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Decisões: Sentença do caso Sérgio Augusto Naya (Edifícios Palace I e II /RJ).

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Juiz Heraldo Saturnino de Oliveira

Comarca da Capital

Juízo da 33ª Vara criminal

Processo nº 98.001.184167-8

Vistos etc.

Sérgio Augusto Naya, José Roberto Chendes e Sérgio Murilo Domingues,

foram denunciados como incursos nas penas do artigo 256 c/c o artigo 258, ambos do Código Penal, o primeiro e o terceiro, e nas penas do artigo 256, § único, c/c o artigo 258, também do Código Penal, o segundo.

Diz a inicial que Naya, empresário da construção civil, fez erigir pela empresa Sociedade de Terraplanagem, Construção Civil e Agropecuária Ltda. - Sersan, na rua Jornalista Henrique Cordeiro, nº 350, na Barra da Tijuca, sob seu comando, um prédio denominado Edifício Palace II, que, em 22 de fevereiro de 1998, desabou parcialmente, causando a morte de oito pessoas.

Afirma-se, ainda, que Chendes, engenheiro civil, foi o responsável pelo cálculo estrutural e que Domingues firmou termo de compromisso com a construtora e passou, na qualidade de pessoa de confiança de Naya, a dirigir a obra e os serviços técnicos, a receber as reclamações dos moradores e determinar as providências necessárias, a representar a Sersan na contratação dos projetos de estaqueamento, arquitetônico, de construção e de empreitada para colocação de vidros, para execução de serviços de rebaixamento, assinando também os boletins de controle técnico do concreto e os formulários de verificação das tarefas executadas.

O Ministério Público afirmou que os laudos elaborados pelo Instituto Nacional de Tecnologia e pelos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva, do Departamento de Engenharia Civil da PUC do Rio de Janeiro, concluíram, de forma uníssona, que o desabamento teve como causa dois erros de projeto, agravados por dois erros de construção.

São apontados como incorreções do projeto o equívoco generalizado no dimensionamento dos pilares e o desacerto grave no cálculo das colunas P4A e P44A.

Como erros de construção, o Ministério Público indicou a deficiência na cobertura das armaduras e, não obstante a indicação no projeto, a falta de estribos suplementares nos pilares. Esses erros foram atribuídos a Naya, principal responsável técnico pela edificação, e a Domingues, que se omitiu em solicitar ao primeiro os reparos necessários, que afirmou desconhecer a notória ruptura dos pilares P4A e P44A e que concorreu para os desacertos na edificação e na manutenção do prédio.

Os erros de projeto foram integralmente imputados a Chendes, apontado como único responsável pelo cálculo estrutural, em cuja realização ocorreu inobservância da NBR 6118.

A responsabilidade de Naya decorre também, segundo se afirma na inicial, da inércia em levar a cabo os reparos, omissão que apressou o desabamento.

Assegurou o Ministério Público que Naya, não só executou irregularmente o Projeto estrutural mas ao revés assumiu o risco de produzir o resultado desabamento, na medida em que se omitiu, tendo o dever jurídico de agir e podendo fazê-lo, no tocante à tomada de decisão e implementação dos consertos e reparos que se faziam necessários no edifício Palace II para não vir ele a desabar.

Com a denúncia veio o inquérito policial que é constituído de inúmeros volumes e apensos.

No apenso I, além da portaria de instauração, há depoimentos de diversos moradores, recortes de jornais, comunicação feita por Carlos Norberto Varaldo de que a Prefeitura deveria obrigatoriamente ter arquivado os projetos, inclusive estruturais, a entrega de documentos por uma arquiteta da municipalidade, autos de apreensão de fragmentos de concreto armado e plantas apresentadas pela Sersan, edital de interdição da sede da empresa, apreensão de documentos por ordem judicial, laudo de vistoria realizada em 1997 nos edifícios Palace I e II, projeto arquitetônico e contrato para sua realização, auto de apreensão de pedaço de concreto com conchas marinhas, documentos, inclusive plantas, encontradas nos escombros, ofício de Estacas Franki mencionando J. R. Chendes como autor da planta de carga, declarações de José Roberto Chendes e auto de apreensão de material dos pilares.

O apenso 2 é constituído de grande número de depoimentos, inclusive de um funcionário da Sersan e de engenheiro que trabalhou na recuperação do Palace I. Há autos de apreensão de outras amostras e de documentos retirados dos escombros, notícia da aplicação de penalidade pelo CREA aos réus Naya e Domingues e um laudo relativo a acidente no elevador do Palace II ocorrido em outubro de 1996. Nesse apenso, a autoridade policial indiciou Sérgio Augusto Naya, Sérgio Murilo Domingues, José Roberto Chendes, Raymundo Cruz Costa e Almir Maia Machado e apresentou seu relatório.

O apenso 3 é constituído de fotografias.

No apenso 4 há cópias de procedimentos que tiveram curso na Prefeitura e cópias do arquivamento dos atos constitutivos da Sersan na Jucerja.

O apenso 5 é constituído exclusivamente de plantas.

No apenso 6 estão o cadastro da Sersan e o curriculum de Domingues.

Apenso 7: laudo de vistoria realizada em 11.6.97 no bloco I pelo engenheiro Nelson Moraes Guimarães.

Apenso 8: inúmeros documentos apreendidos para consulta e exame e requerimento de Domingues.

Apenso 9: autos de exame cadavérico das oito vítimas.

Apenso 10: laudo de exame de local, plantas de cargas dos pilares P1A, P41A, P4A e P44A e planta de armação dos mesmos pilares.

Apenso 11: relatório do Instituto Nacional de Tecnologia.

Apenso 12: correspondência e faturas relacionadas com as fundações.

Apenso 13: certidão de acervo técnico expedido pelo CREA para Estacas Franki Ltda.

Apenso 14: plantas.

Apensos 15, 16 e 17: relatórios sobre o estaqueamento.

Apensos 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27 e 28: documentos e papéis, a maioria dos quais arrecadados em escombros da implosão.

Apenso 29: laudo técnico elaborado por Heb Engenharia e Projetos, duas fitas VHS e diversos documentos.

Há, ainda, uma maquette trazida ao processo pelos assistentes de acusação.

Nos diversos volumes, há cópias de diplomas legais e resoluções sobre a regulamentação e o exercício da profissão de engenheiro, cópia do depoimento de Sérgio Augusto Naya, então Deputado Federal, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, laudo de vistoria e avaliação técnica da Secretaria Municipal de Urbanismo e cópias do processo em que, na 2ª Vara da Fazenda Pública desta Comarca, foi autorizada a implosão do prédio (fls.74).

Recebido o inquérito, o Ministério Público Estadual, pela Promotora que então oficiava no feito, desmerecendo a confiança que lhe depositou este juízo, não devolveu os autos que, a seu pedido, lhe tinham sido entregues. À indevida apropriação seguiu-se a remessa do feito pelo então Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao Senhor Procurador-Geral da República.

Submetido o inquérito ao Supremo Tribunal Federal e distribuído ao Ministro Marco Aurélio, os autos foram enviados à Polícia Federal para oitiva dos indiciados.

Em razão de reclamação formulada por Naya, o Ministro Marco Aurélio requisitou o feito à Polícia Federal e, repondo-o na trilha correta, devolveu-o a este Juízo para manifestação sobre sua própria competência. Nessa oportunidade, afirmou S.Exa. que a organicidade do direito tinha sido quebrada, que o procedimento do Ministério Público Estadual discrepara da norma cogente contida no artigo 10, § 1º, do Código de Processo Penal e que, não obstante certos os reclamos da sociedade no campo da persecução penal, não é menos correto o interesse que ela própria tem no respeito irrestrito ao ordenamento jurídico que assegura as garantias constitucionais (fls. 129/133). Evitou-se o que o Ministro Marco Aurélio denominou de proclamação da incompetência do juízo pelo Ministério Público, heresia que dispensa comentários.

A celeridade per saltum pretendida pelo parquet estadual acarretou atraso de mais de seis meses no processamento, mas, finalmente, prevaleceram as regras legais.

Recebido o inquérito, este Juízo, fiel ao estatuído na Súmula 394 do STF, declinou de sua competência em favor da do Supremo Tribunal Federal (fls.144/146).

Naquela Corte, o Senhor Procurador-Geral da República ofereceu denúncia exclusivamente contra Sérgio Augusto Naya e José Roberto Chendes (fls.344/352), que apresentaram defesa preliminar (fls.452/477 e 444/450).

Entrementes, o Supremo Tribunal Federal reformulou entendimento anterior para estabelecer que a competência especial por prerrogativa de função não alcança aqueles que não mais exercem mandato ou cargo que a assegurava.

Tendo o mandato de deputado federal de Naya sido cassado pela Câmara, o Ministro Marco Aurélio determinou a volta do inquérito a este Juízo (fls.509/512).

O Ministério Público Estadual rerratificou a denúncia formulada pelo Senhor Procurador-Geral da República e nela incluiu Sérgio Murilo Domingues (fls.2/2I e 526).

Recebida a inicial, a magistrada então em exercício na Vara, decretou a prisão preventiva de Naya, que se apresentou às autoridades judiciárias de Brasília e foi transferido para esta cidade.

BÁRBARA DE ALENCAR LEÃO MARTINS, MARIA CRISTINA TEIXEIRA, OSWALDO BENAVIDE e GERALDO VIRGÍLIO CUNHA FERNANDES requereram e foram admitidos como assistentes de acusação (fls.605).

Interrogado (fls.679/682), o 1º réu teve revogado o decreto de prisão e apresentou defesa prévia (fls. 704/747).

O Ministério Público recorreu em sentido estrito da revogação da custódia e impetrou mandado de segurança, cuja liminar foi negada, para emprestar efeito suspensivo ao recurso.

Chendes e Domingues também foram interrogados e apresentaram alegações preliminares (fls.868/872, 873/879, 907/909 e 910/911).

As testemunhas arroladas na inicial foram ouvidas a fls. 989/1.022; as indicadas pelos réus e residentes nesta Comarca foram inquiridas a fls. 1.139/1.163; as precatórias expedidas a requerimento da defesa dos diferentes acusados para oitiva de testemunhas em São Paulo, Belo Horizonte e Brasília foram cumpridas e devolvidas (fls.2180/2181,1479/1503 e 3428/3499, respectivamente).

Vieram ao processo relatório do Professor Bruno Contarini (fls.972/975), análise do Professor Alexandre Duarte (fls.1059/1086), parecer técnico do Professor Gilberto Mascarenhas do Valle (fls.747) e o relatório técnico da empresa Heb Engenharia e Projetos (apenso 29). Há também um exemplar do livro Palace II - a implosão velada da engenharia, escrito sobre a matéria pelo Professor José Celso da Cunha (fls.951).

Há, ainda, parecer do Professor Raúl Zaffaroni: (fls.1181/1220) e cópia dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada na Assembléia Legislativa deste Estado (fls. 1228/1367).

Na fase de diligências, a requerimento do Ministério Público e dos assistentes de acusação, foram tomados os depoimentos de Milton Pereira Ramos (fls.1909/1915) e de Gilson Silva (fls.1916/1919).

Tendo recebido o processo para apresentação de alegações finais, o Dr. Promotor de Justiça requereu a inquirição de testemunha cujo nome só então ofereceu. Seu pedido foi indeferido (fls.1948).

Finalmente, decorridos mais de três meses da abertura de vista, vieram aos autos, em 160 laudas, as alegações finais do Ministério Público (fls.1949/2108).

O Dr. Promotor sustentou a conduta culposa de Chendes, autor do projeto estrutural dos edifícios Palace I e II. Disse ter havido erro generalizado no cálculo dos pilares e, segundo parecer unânime, erro grave no detalhamento das colunas P4A e P44A, que deveriam suportar, cada uma, 480 toneladas e que foram detalhadas para uma carga de apenas 230 toneladas.

S.Exa. refutou a tese defensiva de que Chendes teria realizado mero estudo preliminar e invocou para isso: I) a primeira versão apresentada pelo réu, ainda no inquérito, quando admitiu ser responsável pelo cálculo estrutural dos prédios; II) a existência nas plantas do carimbo ou do logotipo de seu escritório de engenharia; e III) sua presença no Rio de Janeiro, convocado pela Sersan, quando da realização de obras de recuperação do pilar 4C do Palace I.

O Dr. Promotor terminou por atribuir a Chendes, como antecipado na denúncia, a prática do crime de desabamento culposo agravado pelo resultado morte.

No que se refere a Sérgio Murilo Domingues, o representante do Ministério Público afirmou ter ele assumido perante o CREA e perante a Sersan a responsabilidade técnica da construção e que a ruína do prédio determinou, tendo em conta sua culpa técnica, a cassação de seu registro profissional.

S.Exa., para demonstrar a participação de Domingues no cotidiano da obra, historiou seus contatos com outras empresas, a aceitação de propostas e a contratação de serviços, a prática de atos de gerência e de supervisão geral e sua qualidade, juntamente com Naya, de engenheiro responsável pela edificação.

O Dr. Promotor disse que Domingues era diretor técnico da Sersan e tinha, dada sua formação profissional, responsabilidade técnica e intelectual na execução da edificação.

O acusador público afirmou que Domingues, mesmo quando já não mantinha presença física no canteiro de obras, exercia poder de decisão.

Das atividades exercidas pelo 3º réu o Dr. Promotor deduziu que ele era conhecedor de toda sorte de irregularidades e de problemas surgidos na edificação do Palace I e, principalmente, do Palace II, inclusive nos patentes defeitos ocorridos no pilar 17A, concausa do desmoronamento... e argumentou com o auto de infração de fls. 421, de autoria do CREA-RJ, que versa sobre falta de placa na obra (?!).

S.Exa. enfatizou que, não obstante os diversos avisos acerca da necessidade de reparos urgentes nos pilares, especialmente no 17A, Domingues e Naya limitaram-se a determinar a realização de remendos precários. Falou, ainda, de inúmeras reclamações acerca de mau acabamento do prédio.

O representante do parquet sustentou que Domingues, omitindo-se em determinar providências que evitariam o desabamento e que lhe foram repetidamente reclamadas, assumiu o risco do resultado.

Afirmou S.Exa. que, não obstante os erros de cálculo ou de detalhamento, as conseqüências poderiam ter sido minimizadas pela correta cobertura dos pilares e pela colocação de estribos suplementares, que, no mínimo, teriam impedido que o resultado ocorresse no momento e como ocorreu, conclusão a que, segundo o acusador público, chegou o professor Gilberto Mascarenhas do Valle (?!).

Depois de sustentar a caracterização de dolo eventual, o Dr. Promotor terminou o capítulo dedicado a Domingues afirmando que este e Naya agiram com imperícia no exercício da atividade típica de construtores. Não obstante, pediu sua condenação nos termos da denúncia (?!).

A Sérgio Augusto Naya o representante do Ministério Público atribuiu conduta comissiva e omissiva. Disse que o 1º acusado, a despeito das afirmativas de que transferira, desde o início, a responsabilidade da obra a Domingues, tendo, a partir de então, se limitado a raras visitas ao canteiro, continuou a dirigi-la, exercendo com plenitude seu conhecimento especializado para se pronunciar sobre detalhes técnicos e fiscalizar as atividades de seus prepostos, fato reconhecido pelo CREA ao cassar-lhe o registro profissional.

O Dr. Promotor apontou a presença de Naya no escritório encarregado da elaboração do projeto arquitetônico, salientou suas viagens a esta cidade em avião pilotado pelo Comandante Gilson Silva, disse que o vidraceiro Dario o via na obra, que Domingues confirmou esse fato e informou manter com ele contatos diários, não lhe sendo, por isso, lícito alegar que ignorava o que ocorria no empreendimento.

Assegurou, também, que os próprios moradores fizeram-no ciente do risco decorrente das irregularidades e asseverou que, sendo Naya o principal engenheiro civil da construção, não era crível que ele não tivesse conhecimento da corrosão da ferragem do pilar 17A do Palace II, fato sobre o qual, segundo Milton Pereira Ramos, chegou a conversar com outro engenheiro.

Disse que o síndico do prédio enviou a Naya correspondência relacionando irregularidades e pedindo providências que nunca se concretizaram, atitude também adotada, sem êxito, por diversos moradores.

Falou S.Exa. de uma vistoria realizada na 39ª Vara Cível cujas conclusões seriam obrigatoriamente do conhecimento de Naya e afirmou que as providências determinadas para recuperação dos pilares eram inadequadas e até prejudiciais.

Disse que Naya é dotado de personalidade centralizadora e autoritária e que seu afastamento da direção da Sersan foi mera simulação. S. Exa. chegou a traçar-lhe o perfil psicológico.

O Dr. Promotor garantiu que a colocação de tapumes impedindo a passagem de moradores pelas proximidades do pilar 17-A é o cúmulo do símbolo do conhecimento (sic) de SÉRGIO MURILO DOMINGUES e SÉRGIO AUGUSTO NAYA da situação periclitante das pilastras do Condomínio Palace II.

Disse, ainda, que a inspeção do local por peritos oficiais revelou o rompimento do concreto e o cisalhamento das ferragens.

O representante do Ministério Público considerou Domingues simples longa manus ( em certo trecho usou a expressão laranja ) de Naya, que mantinha o controle financeiro da empresa e a quem dava contas até de detalhes insignificantes.

Assegurou que o desabamento se deu pela conjugação das quatro causas: erro generalizado no dimensionamento dos pilares, erro grave no dimensionamento dos pilares P4A e P44A, deficiência de cobrimento das armaduras e ausência dos estribos suplementares.

Salientou S.Exa. erros construtivos apontados no relatório do Instituto Nacional de Tecnologia e atacou as conclusões do laudo do Instituto de Criminalística Carlos Éboli que apontam como causas únicas do desabamento erro generalizado no dimensionamento dos pilares e principalmente erro gravíssimo nos pilares P4A e P44A.

Assegurou que todos os técnicos ouvidos no processo (?!), inclusive aqueles contratados por Naya, são unânimes em reconhecer as duas falhas construtivas e, trazendo à colação o processo de eliminação hipotética de THYREN, afirmou que, suprimidos tais vícios, o edifício não desabaria no momento e do modo como ruiu.

O Dr. Promotor disse também que o emprego de material de melhor qualidade teria proporcionado maior resistência aos pilares, coisa que não ocorreu porque, segundo S.Exa., há indícios de utilização de areia da praia.

O representante do Ministério Público estranhou o fato de ter sido contratado um auxiliar de pedreiro que não tinha curso profissionalizante e invocou suas declarações para colocar sob suspeita os métodos utilizados na construção e para deduzir graves defeitos em sua execução (!?).

Falou de falhas em outros empreendimentos da Sersan e apontou as deficiências mostradas nas fotografias anexadas ao processo.

Disse que Naya sequer teve o cuidado de conferir os cálculos realizados por Chendes e que a eliminação dos estribos suplementares constituiu erro grave de execução pelo qual respondem os engenheiros responsáveis.

Ressaltou que a causa imediata do desabamento foi a ruptura do pilar P17A.

Invocou as declarações de Waldir J. de Melo, engenheiro da Prefeitura, que na Assembléia Legislativa teria dito que o construtor retirou os ganchos de todos os pilares do prédio.

Sustentou que a existência de estribos evitaria uma ruptura brusca.

Sintetizou, afirmando que a imperícia de Chendes não exclui a responsabilidade penal de Naya e de Domingues que executaram mal o projeto e omitiram-se em recuperar tecnicamente os pilares quando perceberam sinais visíveis de colapso iminente.

Tal como fizera em relação a Domingues, o Dr. Promotor sustentou que também Naya assumiu o risco do desabamento e, para demonstrar o dolo eventual, repetiu o que ao longo de inúmeras laudas já tinha afirmado, salientado, enfatizado e apontado.

Invocou outros eventos, outros processos, outros problemas. Todos sem qualquer relação com o fato em julgamento.

Repetindo as alegações contra Domingues, o representante do M.P., para sustentar a caracterização do crime doloso, teceu considerações sobre a imperícia de Naya na construção do prédio (!?).

Terminou pedindo a condenação nos termos da inicial.

Tendo os autos permanecido com o Ministério Público por mais de um quarto de ano, vieram a juízo, nesse período, por iniciativa dos assistentes de acusação: cópia do procedimento disciplinar instaurado no CREA-RJ contra Naya e Domingues e que terminou com o cancelamento da inscrição do primeiro e com a suspensão por dois anos do segundo (fls.2196/31499); pedido de inquirição do presidente do órgão de disciplina da classe (fls.2187/2190), cópias de jornais e publicações; pedido de informações acerca da reclamação apresentada ao Senhor Desembargador Corregedor por Bárbara de Alencar Leão Martins (fls.3153/3158) e cópia do laudo de exame pericial realizado em outra construção da Sersan (fls.3163/3253).

O pedido de inquirição foi indeferido (fls.3551), a reclamação, arquivada (fls.35509), mas a extensa documentação - mais de mil folhas - impôs nova vista ao parquet para aditamento das alegações finais.

A Dra. Promotora então em exercício na Vara declarou-se ciente do acrescido e ratificou a manifestação de seu colega (fls.3.551).

O representante dos assistentes de acusação também apresentou alegações finais (fls.3559/3773). Nelas o fato foi historiado, enfatizou-se a humilhação a que foram submetidos os moradores do prédio, noticiou-se a criação da Associação das Vítimas do Palace II, falou-se da cassação do mandato parlamentar de Naya, das punições impostas a ele e a Domingues pelo Conselho Regional de Engenharia, das restrições criadas pelo município à sua atuação profissional no território fluminense e do bloqueio dos bens do 1º réu pelo Poder Judiciário.

A prova testemunhal e os interrogatórios no inquérito policial foram transcritos e comentados, bem como as declarações dos empregados da Sersan.

Também houve referências a fatos que antecederam o desabamento, qualificados como avisos.

A prova documental colhida pela autoridade policial foi apreciada, especialmente as comunicações que Domingues endereçou a Naya.

Os depoimentos dos representantes da empresa Montana, encarregada de recuperar um pilar do edifício Palace I, mereceram transcrições e comentários. O mesmo ocorreu com as conclusões da vistoria realizadas por engenheiros da Prefeitura apontando como causa imediata da ruína o esmagamento do Pilar P17A.

A mecânica do desabamento também foi objeto de considerações.

Os interrogatórios dos réus em juízo foram transcritos, cotejados e comentados.

A seguir, foram resumidas as declarações do perito do ICCE, Hugo Monteiro Campos, ocasião em que se ressaltou ser ele o engenheiro agrônomo e como tal, segundo o CREA, sem atribuição legal para elaborar laudo na área da construção civil.

Há também sinopses e comentários dos depoimentos das testemunhas arroladas na inicial.

As declarações de Milton Pereira Ramos e de Gilson Silva, tomadas na fase do artigo 499 do CPP, foram transcritas, enfatizadas e analisadas.

Seguiram-se transcrições, comentários e críticas aos depoimentos vindos ao processo por iniciativa dos advogados dos réus, ocasião em que se salientou que os Professores Bruno Contarini, Alexandre Duarte, Gilberto Mascarenhas Barbosa do Valle, Euler Magalhães Lopes e José Celso da Cunha receberam, direta ou indiretamente, pagamento pelos pareceres técnicos que assinaram e que João de Castro é sócio de Naya. As declarações de Everton Barros Borges foram igualmente resumidas e comentadas, oportunidade em que se salientou que a testemunha é de opinião que engenheiros agrônomos não têm conhecimento e condições para apurar causas de desabamento.

A prova documental trazida pelos assistentes foi relacionada.

Há referências à contratação dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva e ao relatório técnico do Instituto Nacional de Tecnologia. As divergências entre o parecer de ambos e as conclusões do laudo oficial foram apontadas, oportunidade em que se defendeu a rejeição da perícia do ICCE e em que se voltou a ressaltar a falta de habilitação legal dos peritos.

Os laudos cadavéricos foram relacionados e os fotogramas dos corpos passaram a integrar as alegações.

Foram destacadas as conclusões da comissão constituída pelo CREA que, analisando os autos do processo identificou como causas principais do colapso da estrutura erro gravíssimo no dimensionamento dos pilares em geral; erro grave no detalhamento dos pilares P4 e P44; deficiências diversas, destacando o cobrimento insuficiente das armaduras, ausência de ganchos nas armaduras dos pilares, indicados no projeto; falta de atenção, quando da execução da obra. A diferença dos blocos dos pilares P1-4-41-44; aço corroído em grande quantidade, falhas na concretagem.

As teses defensivas foram chamadas de farsa, ocasião em que se assegurou que as provas as desmentem.

A conduta de cada um dos réus foi analisada, precedentes jurisprudenciais declarando a culpa do engenheiro que assina o projeto e assume a responsabilidade pela construção foram trazidas à colação e repetiu-se que há no processo elementos que permitem conclusões de que Naya acompanhava de perto a obra, sabia dos problemas da construção e mandou maquiar o pilar P 17A.

Sustentou-se que o subdimensionamento dos pilares P4A e P44A não causaria, por si só, o desabamento e lembrou-se que o edifício Palace I, cujas colunas foram igualmente subdimensionadas, não ruiu. Afirmou-se que o colapso do pilar P17-A é que deu causa ao evento.

Naya foi acusado de ter assumido o risco do resultado quando determinou o maquillage e não adotou medidas urgentes para corrigir as falhas da construção e evitar a tragédia.

Iguais acusações foram dirigidas a Domingues.

Chendes foi acusado de ter sido imperito e negligente na elaboração do projeto estrutural.

Normas do Código Civil sobre responsabilidade de construtores e empreiteiros foram lembradas e, mais uma vez, se invocou a conclusão a que chegaram os Professores Barbosa Guimarães e Rosas e Silva. Pediu-se a procedência da denúncia com a conseqüente condenação.

O Ministério Público trouxe, ainda, aos autos, já na penúltima hora, cópia do laudo elaborado pela CONCREMAT Engenharia e Tecnologia S.A. para a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e que estava em poder do parquet desde 1º de março de 1999 (fls.3773/3854).

Em suas alegações finais (fls.3857/3936), Naya, afirmando que não foram apontados os elementos essenciais da infração penal, sustentou a inépcia da denúncia. Argumentou com a ausência de narrativa do dolo eventual no âmbito fático. Analisou e salientou sua incompatibilidade com o erro, argüiu a falta de adequação entre a conduta e o resultado, disse ser impensável que a um empresário da construção civil fosse indiferente o bom êxito do empreendimento, argumentou que, conhecido o erro de cálculo praticado por outro réu, a construção não teria sido erguida, invocou o princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, estabeleceu diferenças entre dolo eventual e faute avec prévoyance e insistiu que não se pode admitir que a Naya fosse indiferente o resultado desabamento.

As alegações finais do Ministério Público foram analisadas, criticadas e chamadas de contraditórias. Acusou-se a promotoria de ter defendido a responsabilidade objetiva, de ter procurado impor como diretriz à decisão judicial deliberação adotada na instância administrativa e, mais uma vez, de ter confundido culpa e dolo. Ao Dr. Promotor foi increpada a pecha de adepto do Direito Penal do autor e às suas alegações o defeito de pretender impor-se pela prolixidade. Sua análise da prova foi alvo de críticas e suas conclusões foram acoimadas de carentes da demonstração da adequação fato/norma.

As manifestações finais dos assistentes de acusação também foram analisadas. A confusão entre culpa e dolo foi novamente apontada. O apego ao elemento objetivo da infração, criticado e considerado insuficiente à sua tipificação. A utilização de depoimento de interessados no desfecho da ação, censurada.

O réu, embora salientando que as questões de direito por ele suscitadas são suficientes à sua absolvição, não se furtou à análise da prova e aí, ainda que admitindo a existência de erros na construção, afirmou que nenhum deles foi a causa eficiente do desabamento, de vez que este, como afirmado no laudo, ocorreu exclusivamente por equívoco generalizado no dimensionamento dos pilares e principalmente por falha gravíssima no cálculo dos pilares P4A e P44A.

As conclusões técnicas dos peritos do ICCE foram prestigiadas e em seu apoio invocaram-se os pareceres e os depoimentos dos Professores Bruno Contarini, Gilberto Mascarenhas Barbosa do Valle e Alexandre Duarte dos Santos. Lembrou-se o benefício da dúvida, suficiente para a absolvição, e negou-se que Naya estivesse à frente das obras. Argumentou-se com o laudo, dizendo que o desabamento ocorreu em conseqüência do erro generalizado no dimensionamento dos pilares, aí incluído o P17A, cujo rompimento, segundo os assistentes, deu causa à ruína do edifício. Focalizou-se o problema da existência ou não dos estribos suplementares e, embora se tenha sustentado ser irrelevante sua utilização, concluiu-se que não ficou provado e não há certeza de que eles não tenham sido empregados . Negou-se mais uma vez a relação de causalidade. Invocaram-se precedentes jurisprudenciais, destacou-se distorção no noticiário jornalístico e relembrou-se o alegado na defesa prévia. Pleiteou-se a absolvição.

As alegações finais de Chendes estão a fls. 3939/3976. Nelas se negou que o projeto estrutural definitivo do Palace II tenha sido elaborado pelo 2º réu, afirmou-se que as plantas anexadas ao processo são cópias sem autenticação, sem assinatura, sem registro no CREA e facilmente manipuláveis e alteráveis. Negou-se também que os erros nela detectados sejam de autoria do acusado.

Chendes disse que retificou declarações prestadas à Polícia Civil do Rio de Janeiro, classificadas pelo Ministério Público como confissão, para esclarecer, na Polícia Federal e em Juízo, que realizou unicamente estudos preliminares e parciais cuja utilização para construção do prédio, além de irregular, não foi autorizada.

Assegurou também que o CREA-DF, por não ter encontrado anotação de responsabilidade técnica ou qualquer outro documento que o vincule à execução das obras do Palace II, deixou de instaurar, como declarado em nota oficial, processo administrativo para apuração de sua responsabilidade.

Asseverou que a ausência de plantas originais assinadas não permite a conclusão sustentada pela acusação e que o recibo do pagamento de duzentos e quarenta mil cruzados não especifica a obra a que se refere, sendo certo que realizou outros trabalhos para a SERSAN na Barra da Tijuca.

Sustentou que o cálculo estrutural deve obrigatoriamente ser compatível com o projeto arquitetônico e com todos outros planos necessários à edificação.

Admitiu, com base em documento firmado por Domingues e dirigido a Naya (fls. 2064/2067), que pode ter havido alterações no cálculo.

Disse não haver presunção de culpa em Direito Penal, invocou o benefício da dúvida e declarou que, se considerado ser o cálculo de sua autoria, a prova existente no processo é no sentido de ter ocorrido simples erro de desenho ou de detalhamento, equívoco que em nenhum momento ficou demonstrado ter sido praticado por ele e sim por um desenhista identificado nas cópias das plantas como Gilvan.

Esclareceu que o dever da revisão ou de verificação de um desenho não pode ser atribuído ao calculista e sim ao próprio desenhista.

Negou que tenha ocorrido erro no dimensionamento dos pilares, acoimou de inepta a denúncia e pediu que ela seja assim declarada ou, rejeitados esses argumentos, sua improcedência.

Sérgio Murilo Domingues (fls.3890/3994) negou que a acusação que lhe foi dirigida tivesse ficado provada. Assegurou que nunca manteve contato com José Roberto Chendes, que desconhecia as condições que levaram à ruptura dos pilares P4A e P44A e que, quando retornou a esta cidade, encontrou a obra concluída.

Disse que suas obrigações sempre ficaram restritas às edificações em que figurava como engenheiro responsável.

Enfatizou que adotou todas as providências necessárias para sanar as irregularidades e defeitos que lhe foram comunicados.

Sustentou que, quando do desabamento, o prédio já estava interditado pelo poder público e que somente a este pode ser atribuída a responsabilidade pelo que se seguiu.

Argumentou que, não tendo sido denunciado ao Supremo Tribunal Federal pelo Procurador-Geral da República, que o arrolara como testemunha, não poderia, em razão de explícita manifestação de arquivamento, ter sido posteriormente, sem o surgimento de novas provas, incluído no rol dos acusados.

Pleiteou a absolvição.

RELATADOS, DECIDO.

Certamente, dentro de menos tempo do que se pensa, pesquisadores e estudiosos se debruçarão sobre os sérios questionamentos apresentados ao desempenho do Poder Judiciário no final do século XX. E talvez um jovem mestrando ou doutorando em Ciências Políticas encontre os volumosos autos do processo de um desabamento que, a par de suas trágicas conseqüências, mas seguramente não só por elas, foi durante meses manchete nos meios de comunicação e por isso mesmo causou grande comoção na cidade e até no país.

Do hipotético pesquisador espera o obscuro juiz um único reconhecimento: o de sua tenacidade, de sua obstinação e até de sua teimosia em oferecer em prazo razoável a prestação jurisdicional.

Sem a juventude dos valorosos integrantes do parquet, sem a ira santa do representante das vítimas, sem o renome dos brilhantes advogados que, arrostando incompreensões e até hostilidades, souberam manter bem alto os sagrados direitos da defesa, o modesto julgador reivindica apenas o galardão de que, contrariando interesses e também vaidades, cortando cerce manobras protelatórias, revoltando-se quando não as podia impedir, realizou a instrução em menos de sete meses: o primeiro interrogatório se deu em 07 de janeiro de 2000 e as testemunhas cujos depoimentos foram pedidos na oportunidade do artigo 499 do Código de Processo Penal foram inquiridas em 04 de agosto do mesmo ano.

É verdade que a sentença está sendo prolatada mais de 3 anos depois do trágico evento. As razões do atraso estão nos autos e o julgador as reserva para a reflexão do hipotético pesquisador, que certamente não terá dificuldade em encontrá-las.

Por ora, dentro do prazo previsto no artigo 800,§ 3º, do CPP, segue, para análise e crítica dos contemporâneos, a decisão do feito.

A INEXISTÊNCIA DE ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO

A tese renovada por Domingues de que a exclusão de seu nome na denúncia oferecida ao Supremo Tribunal Federal, ocasião em que o Procurador-Geral da República limitou-se a arrolá-lo como testemunha, importou em arquivamento implícito já foi enfrentada e rejeitada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça deste Estado (fls.3553/3555).

De fato, o arquivamento - explícito ou implícito, pouco importa - só se consuma com a manifestação do órgão judiciário a que é dirigido o requerimento. Trata-se de autêntico ato composto. A vontade de um órgão depende e só se torna exeqüível depois de verificada pelo outro. É isso que lhe dá exeqüibilidade. Não fosse o pedido de arquivamento, ainda quando formulado pela autoridade máxima do Ministério Público, sujeito ao controle jurisdicional, o Procurador-Geral não precisaria submetê-lo à apreciação do tribunal perante o qual oficia. Bastar-lhe-ia recolher e guardar os autos.

A matéria já foi analisada por este Juízo nas informações prestadas em pedido de habeas corpus formulado em favor de Domingues (fls.1387/1390) e seria fastidioso repeti-las. Este pequeno resumo é mais do que suficiente para demonstrar a improcedência da tese novamente trazida à baila.

A ALEGADA INÉPCIA DA INICIAL

Peça elaborada de parceria entre o Ministério Público Federal e o do Estado do Rio de Janeiro - este redigiu sua última página, oportunidade em que incluiu Domingues do rol dos acusados e fez quatro modificações na lista de testemunhas; o restante é cópia - a denúncia não é um modelo de técnica jurídica ou de narrativa escorreita. Mas daí a considerá-la inepta é lançar longe demais o disco.

É perfeitamente possível deduzir de seus termos que Naya foi acusado da execução irregular do projeto estrutural do edifício Palace II e de, assumindo o risco da omissão, ter se eximido da realização de reparos que evitariam a ruína do prédio.

Na visão dos acusadores, o evento decorreu de erros na construção e da dolosa omissão em repará-los. A relação de causalidade foi mostrada pela incorporação à inicial de trechos do parecer dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva em que foram apontados erros construtivos e estabelecido que as correções superficiais que possivelmente tivessem ocorrido dificilmente iriam recuperar a capacidade resistente anterior e poderiam até mesmo causar sua redução.

Isso, é óbvio, na ótica dos quatro elaboradores da inicial. Não se está afirmando que a narrativa corresponde à verdade. Procura-se aqui simplesmente defender a denúncia da pecha de inepta, salvá-la como ato formalizador da acusação e instaurador da relação processual, tarefa em que este juiz, por não ser de sua autoria o despacho liminar positivo, se sente muito à vontade.

Aliás, a inicial começou a ser salva pelo próprio Naya quando, na defesa preliminar apresentada ao Supremo Tribunal Federal, limitou suas críticas à capitulação do evento como desabamento doloso e não como crime culposo. Verberou-se, então, o abuso no poder de denunciar. Não se falou em rejeição por inépcia.

AS QUALIFICAÇÕES DOS PERITOS

Já no final do processo, os assistentes de acusação, sob alegação de que seus subscritores seriam engenheiros agrônomos e não estariam habilitados para realizar perícia em matéria de engenharia civil, tentaram desqualificar o laudo do ICCE. Sem razão, no entanto.

O CREA-RJ em nota oficial, embora considerando que agrônomos não têm atribuição legal para emitir opinião técnica na área da construção civil, ressalvou que isso não invalidava o laudo oficial porque na equipe de peritos havia um engenheiro civil ( fls.2192).

Não obstante confortador, o apoio do CREA-RJ não era necessário. Há na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro um órgão com corpo técnico cujos membros são admitidos em certame público em que são estabelecidos os requisitos para inscrição.

A legitimidade para a realização de exames periciais decorre, portanto, da qualidade de integrante do plantel técnico selecionado pelo ICCE e da designação de seu Diretor. No caso, além de solicitar o concurso do Instituto Nacional de Tecnologia para dar suporte aos seus experts, o ICCE designou quatro peritos oficiais, ou seja, o dobro do estabelecido no artigo 189 do CPP, um deles pelo menos engenheiro civil. Mas ainda que assim não fosse, não haveria vício formal no laudo. A investidura dos peritos deriva da lei e dispensa o agrément do CREA-RJ.

O ERRO DE CÁLCULO OU DE DETALHAMENTO

A culpa de José Roberto Chendes é insofismável e está bem demonstrada. Ninguém, nem mesmo o 2º réu, nega a existência de erros generalizados no cálculo dos pilares e de falha grave no detalhamento dos denominados P4A e P44A.

O laudo do ICCE aponta os equívocos, endossando nessa parte a análise dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva que afirmaram que na maioria das colunas seu dimensionamento ficou abaixo do coeficiente de segurança, entendido este como a relação entre a força solicitante e a força resistente, a qual, segundo recomendação da NBR 6118, deve ser igual ou superior a 1,40.

Apenas 10 dos 41 pilares listados (veja-se tabela 2, fls.1443) atingiram esse número e, mais grave, os identificados como P4A e P44A apresentavam coeficiente de segurança de 0,66. Menos da metade do que o mínimo exigido ( examine-se a mesma tabela ).

Inquestionáveis, pois, os erros de cálculo ou de detalhamento das ferragens. Pouco importa sua natureza, pois em ambos o casos a responsabilidade é do estruturista.

O desenho é simples representação gráfica das soluções de cálculo adotadas para remate estrutural de um projeto arquitetônico. Nada mais é do que a visualização do trabalho desenvolvido pelo calculista de forma a permitir sua execução e, mais que isso, sua observância. Sua elabora

ção ou conferência é de responsabilidade do engenheiro estruturista e não de um humilde desenhista que eventualmente se limite a delinear graficamente o que foi detalhado no cálculo realizado por aquele.

Ao calculista cabe, se não a elaboração do desenho, sua conferência rigorosa. Este nada mais é do que a imagem de seu próprio trabalho.

Além disso, não é crível, no caso concreto, que o desenhista tenha errado duas vezes. Afinal, foram elaboradas plantas para o Palace I e para o Palace II e em ambas havia erro grave no dimensionamento dos pilares P4 e P44. E mais do que isso: houve erro generalizado no dimensionamento de 32 dos 41 pilares (veja-se laudo, fls. 1214). Convenhamos que não seria possível ao desenhador equivocar-se tanto. O erro, sem dúvida, estava no cálculo, cuja memória Chendes obstinou-se em escamotear, muito embora tenha declarado à autoridade policial que, quando tomou conhecimento do desabamento, estudou e conferiu seu projeto e seus cálculos, concluindo por sua correção (fls.161v do 1º apenso).

Não podendo negar a existência das incorreções, optou Chendes por renegar o projeto, por não admitir a autoria, dizendo que se limitou a realizar um estudo prévio, jamais concluído.

Inutilmente, no entanto. Ouvido no inquérito, o 2º réu admitiu a autoria que depois renegou (fls.161/161v do 1º apenso); as cópias de plantas encontradas têm o logotipo de seu escritório J.R. CHENDES; a testemunha João de Castro, ex-diretor da Sersan, informou que todo o cálculo é de responsabilidade de José Roberto Chendes, que este inclusive o examinou no dia seguinte ao desabamento e confirmou sua exatidão , e que o calculista recebeu pelo trabalho. A testemunha disse, ainda, que teve em mãos, depois do evento, o projeto total elaborado pelo 2º réu.

Mas não é só. O engenheiro Armando Negreiros Caputo, um dos responsáveis pelo estaqueamento do prédio, tarefa realizada por Estacas Franki Ltda., informou que a planta de locação de carga dos pilares, indispensável à elaboração da planta de estaqueamento, era de autoria de Chendes.

Ainda há mais. O mestre de obras Almir Maia Machado, que acompanhou a tentativa de recuperação pela empresa Montana de uma das colunas do Palace I, prédio gêmeo e construído com base no mesmo projeto, informou que durante os trabalhos Chendes esteve no local. A conclusão é óbvia e única: só sua condição de autor da planta estrutural do conjunto dos dois edifícios justificava o deslocamento de Brasília ao Rio para acompanhar o reforço que se tentava fazer.

De outro lado, embora sem mencionar seu nome, o Professor José Carlos da Cunha, nas páginas 86/88 de seu livro Palace II - a implosão velada da engenharia, narra o encontro que teve no aeroporto de Brasília com uma pessoa que se identificou como \"o calculista do prédio da Sersan\". Se sua delicadeza moral o impediu de colocar no livro o nome de quem assim se apresentou, no depoimento judicial, tomado por precatória em Belo Horizonte, não houve como deixar de admitir que a Sersan o informou de que Chendes era o autor do cálculo e marcou uma entrevista entre ambos no aeroporto de Brasília (fls.1499).

Reconhecido o erro e provada a autoria, não há que se negar a imperícia, aqui caracterizada pela inobservância de cautelas específicas no exercício da arte da engenharia. O exemplo sob medida está em HUNGRIA ( Comentários, 2ª ed., vol. I, t. 2º, p. 197): Tão imperito é o cirurgião que, pouco versado em anatomia patológica, pinça o pneumogástrico ao paciente ou corta-lhe um vaso sangüíneo de grosso calibre, quanto o engenheiro que, por erro técnico, constrói uma ponte sem a devida resistência, vindo ela a desabar sob o peso que deveria suportar.

A DEFICIÊNCIA NO COBRIMENTO DAS ARMADURAS E A AUSÊNCIA DE ESTRIBOS SUPLEMENTARES.

Estabelecido que o desabamento se deu por erro generalizado no cálculo das colunas e por equívoco grave no detalhamento dos pilares P4A e P44A, que deveriam suportar, cada um, a carga de 480 toneladas e que foram dimensionados para apenas 230 toneladas, desacerto que ocasionou um déficit de 500 toneladas, resta examinar se os defeitos construtivos apontados no parecer dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva - deficiência no cobrimento das armaduras e ausência de estribos suplementares indicados no projeto - ou, ainda, a falta de reparos, argüição solteira inserida na inicial, concorreram para o desabamento ou fizeram com que este ocorresse em momento diverso e de forma diferente daqueles em que deveria sobrevir.

AS DÚVIDAS DOS MESTRES

De início, deve ser salientado que nem mesmo os únicos técnicos que arrolaram os defeitos construtivos como concausa da ruína revelaram convicção em suas conclusões.

Logo no começo das considerações finais (fls. 1450), os dois professores reconheceram e ressalvaram (o verbo foi efetivamente utilizado) que a modelagem de uma estrutura é uma representação matemática da realidade física e que as informações disponíveis para esta modelagem foram bastante limitadas.

A seguir, Barbosa Guimarães e Rosas e Silva aventaram a hipótese, ou seja, uma afirmação simplesmente provisória e carente de demonstração definitiva, de que alguma corrosão pode ter se instalado, reduzindo a capacidade de carga dos pilares ao longo do tempo.

No que se refere à ausência das armaduras transversais suplementares, os professores também não se animaram a transpor os limites de dados que não explicam de modo integral os fenômenos e, prudentemente, utilizaram o futuro de pretérito, tempo verbal que exprime incerteza, possibilidade, dúvida ou suposição sobre fatos passados, dizendo que elas poderiam ter suprido a necessária contenção lateral das armaduras longitudinais.

E por que tanta cautela, tanta dúvida, tanta incerteza? O próprio parecer responde: as informações disponíveis foram bastante limitadas.

E quão grande foi essa limitação? A resposta está no depoimento do Professor Rosas e Silva (fls.1000): só examinou os pilares P4A e P17A; do primeiro restou um pedaço de aproximadamente 1m e do segundo um resíduo de 2m. Assim, de um edifício de 23 pavimentos, dos cerca de 280m dos quatro pilares que ruíram (fls.999) e dos certamente milhares de metros das demais colunas, só restaram, depois de sua implosão, 1m de um pilar e 2m de outro. Por isso o depoente não teve condições de dizer se nas outras colunas havia cobrimento suficiente e estribos suplementares (fls.1000). Nem mesmo o desgaste que poderia decorrer da deficiência de cobrimento foi constatado em grau comprometedor. O Professor Rosas e Silva disse ter o Instituto Nacional de Tecnologia concluído que o trecho analisado do pilar P17A (G 1) não evidenciou corrosão significativa em sua armadura (fls. 1413).

E os estribos suplementares? Rosas e Silva ressalvou que não tinha condições de dizer se eles existiam ou não nas partes não examinadas.

A prudência e a correção do mestre eram realmente necessárias. Basta ver que no pilar P4C do Palace I, edifício gêmeo do que ruiu, construído na mesma época e com base no mesmo projeto, só que rebatido, o engenheiro Gustavo Jorge Chaves de Oliveira, encarregado pela empresa Montana Ltda., de executar serviços de reparação, informou que havia estribos (fls.1006).

Como se observa, o parecer dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva, não obstante a idoneidade moral, competência técnica e renome profissional de seus autores, é um poço de incertezas, um mar de dúvidas, um universo de indecisões. A pedra angular da imputação não sustenta o arcabouço que os acusadores público e particular pretenderam erigir e muito menos pode servir de base a decreto condenatório, decisão que exige convicção, que não se constrói sobre a incerteza, que não se assenta em hipóteses.

A conclusão de Rosas e Silva de que a engenharia trabalha com probabilidade que vai de zero a um e que suas observações têm alta probabilidade, embora reconheça não haver certeza absoluta (fls. 1001), leva em matéria penal à rejeição da pretensão punitiva.

Diferentemente do matemático que mede a freqüência com que se repete um evento aleatório, o juiz criminal só pronuncia uma condenação quando constata que a probabilidade se transformou em certeza. Não atingida esta, impõe-se o non liquet.

Mas, ainda que demonstrado que a dúvida não foi afastada, é necessário prosseguir no exame da prova. Insistir-se-á sempre que os defeitos construtivos, de cuja existência já não se tem certeza, contribuíram para o desabamento ou ao menos fizeram com que ele ocorresse de forma diferente.

A PATERNIDADE DO MÉTODO DE ELIMINAÇÃO HIPOTÉTICA

E aqui, antes de recompor as informações, depoimentos e pareceres que o Dr. Promotor citou apenas parcialmente, cabe esclarecer que a fórmula da eliminação hipotética atribuída ao jurista sueco JOHAN C. W. THYREN, que a divulgou em 1894, é na realidade do processualista austríaco, JULIUS GLAZER, que a publicou em 1858 (JUAREZ TAVARES, Teoria do Injusto Penal, páginas 210 e 211).

Atribuída a quem de direito a paternidade do método, passa-se então a examinar, sem distinções ou pinçamentos, o que disseram os experts.

AS OPINIÕES TÉCNICAS

Os quatro peritos do ICCE consideraram puramente conjecturais as conclusões de que a deficiência de cobertura e a inexistência de estribos contribuíram para o desabamento (fls.1216), afirmativa ratificada por Hugo Monteiro Campos em seu depoimento (fls.989/995).

O professor Bruno Contarini, renomado calculista com trabalhos executados em diversos países, declarou taxativamente que, não tivesse havido erro no detalhamento nos pilares P4 e P44, o edifício Palace II não teria desabado (fls.1144).

Já o professor Alexandre Duarte Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é de opinião que, não tivesse ocorrido o erro gravíssimo de cálculo (desenho), a ruína não teria ocorrido. Os defeitos construtivos apontados por Barbosa Guimarães e Rosas e Silva foram considerados lamentavelmente comuns e só capazes de comprometer a estrutura a longuíssimo prazo, se não forem feitas quaisquer recuperações.

Em seu depoimento (fls. 1147/1151), o Professor Duarte Santos reafirmou o parecer e esclareceu que já recuperou aproximadamente 350 estruturas, que em quase todas verificou deficiência de cobrimento e oxidação das ferragens e, no entanto, nenhuma delas caiu. Disse, ainda, que a falta de cobertura adequada de uma coluna situada à beira-mar e não corretamente mantida leva, depois de decorridos anos, ao seu colapso; no entanto, tal colapso ocorre a longo prazo; está recuperando o Hospital Universitário da Ilha do Fundão cujas ferragens estão inteiramente descobertas com corrosão mínima de 50% em suas seções; no entanto o prédio continua em pé.

Não obstante a clareza das declarações, o acusador público chegou a afirmar que de seu esmiuçamento se deduzem a má execução dos pilares, omissão de consertos urgentes e a falta de correção de defeitos que poderiam ser sanados com a simples recuperação de colunas, como a realizada no condomínio Palace I pela firma Montana Ltda. (fls.2010).

A conclusão é no mínimo apressada.

Está, com todas as letras, a fls. 1149: que o trabalho realizado nesse último (Palace I) pela Montana em nada serviu para aumentar a segurança do edifício, de vez que se limitou a recapear uma pequena parte de uma coluna que precisava ser reforçada integralmente.

Fica, assim, claro que não havia cobertura, estribo ou manutenção que suprissem o déficit de 500 toneladas decorrente do errado detalhamento das colunas P4A e P44A.

Vejamos agora o parecer e o depoimento de Gilberto Mascarenhas Barbosa do Valle, ex-professor da Pontifícia Universidade Católica e do Instituto Nacional de Tecnologia, ex-Presidente do Council on Tall Buildings and Urban Habitat e Vice-Presidente da International Association for Bridges and Structural Engineering.

Apoiado em farta literatura técnica, cuja cópia anexou, salientando as já mencionadas observações bastante evasivas das conclusões dos Professores Giuseppe Barbosa Guimarães e Raul Rosas e Silva, o parecerista concluiu que estribos suplementares não têm qualquer influência comprovada na resistência da coluna e que cobrimento menor não reduz a carga de ruptura do pilar.

A utilização dos estudos do Professor Barbosa do Valle para afirmar que a inexistência de estribos suplementares e as deficiências de cobertura alteraram, segundo o procedimento hipotético de eliminação (agora atribuído pelo Dr. Promotor a DAMÁSIO E. DE JESUS), a forma e a época do desabamento revela superficialidade do exame do parecer e do depoimento.

O edifício Palace II desabou cerca de 10 anos depois de iniciada sua construção (vejam-se depoimento de João de Castro e alegações finais da Promotoria, fls. 2023) e o Professor Barbosa do Valle afirmou que se o prédio tivesse sido bem dimensionado, se não houvesse os erros de cálculo ou de detalhamento, a ruína, não obstante os defeitos construtivos - deficiência de cobrimento das colunas e ausência de estribos suplementares -, só ocorreria em 30 anos. Já num prédio bem construído mas com pilares subdimensionados, a ruína ocorreria, como ocorreu, cerca de quatro anos depois de ter começado a atuar sobre as colunas carga correspondente a 82% do peso de rotura. Normalmente, segundo a literatura técnica, o rompimento dar-se-ia de 6 meses a 2 anos depois de atingidos 85% da carga de fratura, percentual atingido quando o edifício começou a ser habitado e que acarretou o desabamento em 19 meses. Vejam-se os exercícios de fls. 1059/1062 e a conclusão de que um pilar bem projetado e mal executado, que durante sua vida útil não passou por nenhuma manutenção, apesar de claramente atacado, pode durar mais de 30 anos; ao contrário, um pilar mal projetado e muito bem executado tem vida efêmera.

AINDA O MÉTODO DA ELIMINAÇÃO HIPOTÉTICA

Como se nota, a aplicação da fórmula da eliminação hipotética, levaria a conclusão inversa àquela brandida pelo acusador público: eliminados os erros de cálculo ou de detalhamento, o prédio não desabaria na época e do modo com que veio abaixo e sim 30 anos mais tarde.

Aliás, ainda que desprezados os exercícios do Professor Barbosa do Valle, há nos autos fatos incontroversos que levam a conclusão irrefutável: 1) o pilar 4 do edifício Palace I, tanto quanto o do Palace II, foi subdimensionado ( informação do Professor Contarini, fls. 973 e depoimento, fls. 1142); 2) o pilar 4 do Palace I tinha estribos suplementares e foi submetido a obras de conservação e reparo executadas pela Montana (fls.1002/1006); 3) o mesmo pilar, não obstante tais trabalhos e a presença de estribos suplementares, estava se rompendo (depoimento do Professor Bruno Contarini, fls. 1145).

Irrecusável o silogismo: o pilar era dotado de estribo suplementar e de cobertura reforçada; o pilar tinha sido mal dimensionado pelo calculista; o pilar estava se rompendo; a ruptura é conseqüência do erro do estruturista e não de desacertos construtivos.

A SEQÜÊNCIA EM QUE OS PILARES SE ROMPERAM

Afastando a hipótese de que a ruína se deu em conseqüência da quebra dos pilares P4A e P44A, os acusadores procuraram demonstrar que o desabamento decorreu do rompimento do pilar P17A. Para isso, invocaram as declarações do engenheiro da Defesa Civil Alexandre Georgiadis que, ao entrar no 2º subsolo, encontrou o pilar P17A rompido (fls.1162). No entanto, consta também de seu depoimento que esse foi o único pilar que examinou, informação que inutiliza a conclusão da acusação.

A assertiva é também contestada pelo Professor Rosas e Silva, que, diferentemente do sustentado na versão do M.P. e de seus assistentes, disse que o colapso do prédio ocorreu em decorrência da submissão dos pilares 44A e 4A a uma carga que transferiram em parte para os pilares P34A e P17A; que ao longo do tempo os pilares P35A e P17A tiveram as tensões nas respectivas armaduras longitudinais muito aumentadas, até que houve o colapso conjunto dos 4 pilares (fls.997/978).

Também o Professor Contarini, do alto de sua larga experiência, colocou a controvérsia em termos simples e irrefutáveis: a visualização de um pilar se quebrando não significa que ele tenha sido o primeiro a romper, de vez que é possível que o rompimento de um outro pilar, ocorrido anteriormente, tenha transferido a carga para aquele pilar quebrado posteriormente; a visualização de um pilar rompido só significa que aquele foi o primeiro se o observador tiver oportunidade de ver todos os outros pilares; no entanto, a pessoa que disse ter visto o pilar 17 se rompendo disse que não examinou os que se encontravam atrás do tapume (fls. 1144).

Mesmo o Professor Duarte Santos, que admite ter a ruptura se iniciado pela quebra do pilar 17-A ou do pilar 35-A, ressalva que o desabamento ocorreu em razão do subdimensionamento das colunas 4A e 44A, que transferiram sua carga para uma outra maior, a qual, não podendo suportá-la, terminou por romper-se (fls.1150).

O TAPUME

E surge agora a questão do tapume. Segundo a Promotoria (fls.2040), o cúmulo do símbolo do conhecimento de Sérgio Murilo Domingues e Sérgio Augusto Naya da situação periclitante das pilastras do condomínio Palace II foi a colocação de tapumes na área que circunscrevia o Pilar 17-A, o mais afetado pelas falhas construtivas, vedando a passagem de qualquer morador ao local, ordem partida evidentemente da autoridade máxima de coordenação da obra, dada a relevância e a conseqüência desse ato, evitando maiores reclamações por parte dos residentes.

A conclusão não é correta. O Dr. Promotor não examinou o depoimento de Gregório Duarte Santos, engenheiro civil e síndico do conjunto constituído pelo Palace I e pelo Palace II, segundo o qual o almoxarifado inicialmente estava no S1 e por solicitação da administração do prédio foi transferido para o S 2; no S 1 o almoxarifado se situava em um dos lados da garagem e no S2 para melhor aproveitamento do espaço ficou nos fundos da garagem; havia um portão por trás do prédio que dava acesso ao almoxarifado. O almoxarifado foi transferido do S1 para o S2 em meados de 97 (fls.1009).

Não houve, como se nota, o propósito diabólico de esconder pilares comprometidos, mas o simples e prosaico interesse dos próprios condôminos em levar o almoxarifado para a garagem mais baixa - e certamente por isso menos preferida - e, assim, melhor aproveitar o espaço comum.

Aliás, o síndico também é engenheiro estruturista e não hesitou em afirmar que nunca admitiu a possibilidade de queda do prédio e que, se pensasse em sua ruína, jamais permaneceria lá com sua família. E foi mais além: disse que pode haver pilar com mau acabamento ou acabamento defeituoso que do ponto de vista estrutural tenha o mesmo desempenho ou a mesma segurança que um pilar bem acabado e acrescentou que não considerou as ferragens expostas como fato comprometedor para a estabilidade do prédio, ressalvando que a não adoção de providências poderia acarretar o comprometimento da estrutura (fls. 1007 e 1008).

THE DUE PROCESS OF LAW

ão obstante a inicial tenha atribuído os erros de cálculo ou de detalhamento exclusivamente a Chendes, o acusador público procurou atribuir a Naya omissão na conferência de ambos e disse que os desacertos eram tão evidentes que o Professor Contarini os identificou a olho nu, em poucos minutos.

A acusação, além de não contida na denúncia, razão pela qual agride o due process of law, constitui autêntica extravagância em matéria de construção civil. Não cabe ao dono do empreendimento, ao construtor ou ao engenheiro executor conferir os cálculos do estruturista.

O Professor Rosas e Silva, sempre chamado à colação pelos acusadores, disse que, embora o profissional responsável pela obra pudesse detectar o erro no detalhamento dos pilares, certamente não o fez porque esse exame não faz parte do procedimento usual do engenheiro responsável pela execução; que não é usual a verificação da exatidão do detalhamento dos pilares pelo engenheiro responsável pela obra (fls. 999).

Essa assertiva foi confirmada por João de Castro, ouvido pela Justiça de Brasília: sequer o engenheiro da obra tem condições de conferir se o cálculo estrutural está certo ou errado, ele tem de seguir esses cálculos, seguir as plantas do projeto.

A fácil detecção do equívoco pelo Professor Contarini deve-se em primeiro lugar à sua notória experiência de mais de quarenta anos em cálculos estruturais e também, é evidente, ao fato do desabamento já ter acontecido. Todas as mentes e todos os olhos estavam dirigidos e voltados para a descoberta das causas da tragédia. Isso, todavia, não impediu que os engenheiros da Prefeitura, certamente sem a experiência do Professor Contarini, dissessem que tudo tinha sido visto e que não havia erro de cálculo (fls.1145).

CONCRETO COM AREIA DA PRAIA E ÁGUA IMPRÓPRIA

Afirmou-se também que as colunas foram erguidas com concreto feito com areia da praia e água imprópria. Sem qualquer razão, no entanto.

Instituto Nacional de Tecnologia, embora frisando que foram encontrados na massa do concreto caulinita, pequenos grumos de material argiloso com 30mm de diâmetro e 45mm de comprimento, papel, material plástico e madeira, concluiu não haver indicação da utilização de água do lençol subterrâneo próximo ao prédio ou de areia do solo das vizinhanças. Concluiu também que, excetuado um único valor correspondente a uma amostra extraída a 40mm de profundidade da superfície do concreto do pilar P17A do primeiro subsolo, os valores médios de cada elemento estrutural atendem às recomendações do American Concrete Institute Mannual of Concrete Pratice - ACI 318 \" Building Code Requirements for Reinforced Concrete\" (fls.1371).

Associação Brasileira de Cimento Portland também acentuou que os estudos químicos revelaram para o concreto traço igual a 1:5, com elevado teor de agregado miúdo, consumo de cimento de 410 kg/m3 e que as análises microscópicas permitiram inferir condições de dosagem e preparação adequadas, não tendo sido identificados compostos ou feições responsáveis ou decorrentes de processos deletérios (fls.1434).

Da mesma forma, o Professor Rosas e Silva informou que o exame do concreto empregado no Palace II não acusou nenhuma irregularidade e que, segundo pesquisas do INT, o aço era de boa qualidade (fls. 1001).

MATERAIS ESTRANHOS NA MASSA

A existência de materiais estranhos (madeira, conchas, plástico e papel) na massa foi considerada pelo perito Hugo Monteiro Campos como comum em obras.

Já o valor irregular mencionado no exame realizado pelo Instituto Nacional de Tecnologia resumia-se à presença de 0,01 de cloretos na amostra extraída a 30mm de profundidade da superfície do concreto do Pilar P17A do 1º subsolo, cifra bem inferior ao máximo admitido na Espanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil, segundo estudo realizado pela empresa Heb Engenharia e Projetos e trazido ao processo pelos assistentes de acusação, (apenso 29, folha 10/13), fato que levou a responsável pelo relatório a concluir que, com relação aos níveis de cloreto e sulfato solúveis, os índices estão dentro dos limites aceitáveis pela NBR 6178/78.

liás, esse estudo, embora apontando defeitos construtivos não relacionados na denúncia e que por isso mesmo não podem ser considerados, afastou as hipóteses tão largamente difundidas, mas igualmente não incluídas na acusação, de utilização de areia e água contaminadas por sais marinhos. Sua conclusão é de que o nível de cloretos na massa é normal, que não havia nela sulfato de magnésio, presente na água do mar, e que a composição do concreto está dentro da normalidade (apenso 29, folhas 10 e 11/13).

DEFEITOS DE ACABAMENTO

Houve ao longo de todo o processo, talvez por influência da desinformação propalada pelos media, equivocada ou deliberada confusão entre defeitos de acabamento e erros construtivos. Blocos de mármore que se despregaram, emboço, argamassa e revestimento de má qualidade, afastamento entre lajes, alvenaria pouco resistente, gesso que se desfazia, vazamentos e infiltrações, tudo foi salientado, alegado e utilizado para provar a inicial, que, todavia, não se referiu - e nem poderia - a esses defeitos. Não obstante indicadores de uma construção de segunda e fundamento válido para ação de indenização, nenhum deles deu causa ao desabamento.

Gregório Duarte dos Santos, síndico e engenheiro, mencionou que as reclamações levadas ao seu conhecimento pelos moradores diziam respeito ao acabamento e acrescentou que estruturalmente era impossível prever o acidente (fls.1007).

Almir Maia Machado, mestre de obras falou que havia inúmeras reclamações do acabamento (fls. 1011).

Braulino da Silva, morador do apartamento 1506 queixou-se de que a unidade lhe foi entregue mal acabada e com infiltrações (fls. 1016/1017).

O Coronel Marcos Aurélio Carlos da Silva queixou-se de vazamentos, da necessidade de retirar placas de revestimento e da falta de limpeza.

Como se observa, havia inúmeras reclamações. A Sersan era seguramente uma má construtora de obras de segunda. Havia também reclamos contra a inércia de Domingues e contra o descaso e a prepotência de Naya. Sem dúvida um e outro eram desidiosos e o segundo ardiloso, embusteiro e prepotente. Mas o prédio não ruiu por isso. E é pelo desabamento que ambos estão sendo julgados.

A INTERRUPÇÃO DO NEXO CAUSAL

Ainda que o exame das provas em que se alicerça a acusação seja suficiente para absolver Naya e Domingues, não deseja o juiz furtar-se de considerações sobre as teses defensivas.

Assim, tendo em vista que o Direito Penal cuida da conseqüência de ações ou omissões de seres humanos que exercem influência sobre eventos ocorridos na Terra e não do comportamento de deuses que agem e interagem no Olimpo e que até podem mudar o curso dos astros, não há como aceitar a conclusão de que a presença da Defesa Civil e sua omissão em interromper a causalidade em movimento abriram uma nova cadeia causal, como se fosse uma causa independente.

É preciso não esquecer que a efetiva interrupção do primitivo nexo causal ocorre quando se dá a concreta e eficiente ação do poder público, com meios e recursos para impor suas deliberações, assumindo, assim, as responsabilidades derivadas de sua atuação.

No exemplo do Professor Zaffaroni, não haveria interrupção do primeiro nexo causal se os policiais não dispusessem de uma lanterna com luz vermelha para visualizar a presença de um caminhão sem luzes traseiras e não tivessem um carro patrulha que seguiria atrás dele até o posto de gasolina mais próximo.

No caso, segundo a cronologia constante do laudo (fls.1205/1206), o 1º estrondo ocorreu aproximadamente a 1h 20 min, por volta de 1h 50 min chegou ao local uma guarnição composta de apenas 3 homens (fls. 1161) do Grupamento de Buscas e Salvamentos do Corpo de Bombeiros que atendia a um acidente de trânsito nas imediações, às 3h 05 min o operador de rádio da Defesa Civil Municipal registrou a ocorrência, por volta de 3h 40 min compareceu ao prédio um único engenheiro da Defesa Civil que, depois de examinar no subsolo um pilar cujos ferros tinham assumido o aspecto do gogó de ema, determinou a interdição do bloco. O desabamento se deu por volta de 4h 05 min.

Não houve, portanto, tempo, recursos, meios, equipamento e pessoal para desocupar 176 apartamentos e tornar efetiva a interdição que aí e só aí interromperia a causalidade em andamento e daria ensejo ao nascimento de um novo nexo causal e que, obviamente, só diria respeito à qualificadora derivada do resultado morte.

As conclusões do Professor Zaffaroni, levadas às últimas conseqüências, não mitigadas com as imperfeições do comportamento humano e com a pobreza dos recursos colocados à disposição dos poderes públicos, terminariam por admitir que o nexo causal de qualquer crime poderia ser interrompido com a simples convocação do guarda da esquina e com a invocação de seu dever de agir preventivamente para evitar a prática de delitos.

AS VISITAS DO EMPRESÁRIO AO CANTEIRO DE OBRAS

Naya, controlador e praticamente único dono da Sersan, acompanhava o andamento das obras de sua empresa, visitando-as periodicamente, inteirando-se em traços largos do que se passava nos respectivos canteiros e ditando determinações de ordem geral.

É o que consta do depoimento de Milton Pereira Ramos: Naya visitava a obra 3 ou 4 vezes por mês, às vezes chegava às 6h da manhã e em outras às 4h da tarde, conversava com os engenheiros e descia para observar os trabalhos; sua visita durava 30 ou 40 minutos (fls.1912).

As palavras de Milton foram confirmadas pelo depoimento do piloto Gilson Silva, que trabalhou para Naya de setembro de 1990 a outubro de 1994 e informou que nesse período trazia o réu a esta cidade cerca de 3 vezes por mês, saindo de Brasília por volta de 4h 30 min e retornando às 11h ou meio-dia (fls.1916).

O mestre de obras Almir Maia Machado disse que em quatro anos viu o 1º réu apenas duas vezes (fls.1011).

O não envolvimento de Naya com problemas técnicos de engenharia é inferível das declarações de Milton, segundo as quais havia permanentemente na obra engenheiros que tomavam conta dos trabalhos e que esses profissionais não eram Sérgio Naya e Sérgio Murilo (fls. 1915), e da informação de Gilson de que nunca viu o 1º réu com plantas de obras (fls.1917).

A presença de engenheiros-residentes no canteiro é também referida por Braulino da Silva e Santos (fls. 1017) e por Dario dos Santos Rodrigues (fls.1019).

Demonstrado que Naya não se envolvia em problemas técnicos, que suas visitas eram espaçadas e curtas, que sua atenção se limitava a providências de ordem geral e à obtenção de informações sobre o andamento dos trabalhos, e que havia permanentemente engenheiros acompanhando e dirigindo a obra, os erros de construção, ainda que existentes, não lhe podem ser atribuídos.

Havia divisão de trabalho e delegação de funções. E quando tal ocorre a culpa do delegante só se configura quando fica demonstrado que ele tinha razões para saber que o delegado, a quem cumpria a execução da parte técnica, não observava os cuidados indispensáveis e, ainda assim, não o afastava do exercício das funções transferidas. Não há notícia disso nos autos.

A RESPONSABILIDADE PENAL NÃO DECORRE DO CUMPRIMENTO DE EXIGÊNCIAS ADMINISTRATIVAS.

Da mera assinatura da anotação de responsabilidade técnica - ART - não se pode deduzir responsabilidade penal. Trata-se de documento para fixação da responsabilidade administrativa e de eventual responsabilidade civil, mas que, isoladamente, sem prova de que aquele que o assinou contribuiu de uma forma ou de outra para o desabamento, não serve de fundamento à responsabilização criminal.

O Código Penal não admite a responsabilidade objetiva ou sem culpa (sensu lato). Não há em nosso ordenamento jurídico-criminal a culpa ex lege ou decorrente juris et de jure de inobservância de disposições regulamentares (HUNGRIA, Comentários, 2ª ed., vol. I, tomo 2º, p. 108). Sua averiguação é realizada in concreto e não decorre de assinatura de termos exigidos pelo Direito Administrativo.

O DOLO EVENTUAL

Não sendo de responsabilidade de Domingues e de Naya o projeto estrutural e seu detalhamento, não tendo sido demonstrado que o edifício ruiu em razão de erros construtivos, tendo ficado claro que o controlador da empresa limitava-se a inteirar-se do andamento da obra e a adotar providências de ordem geral e sendo inquestionável que a responsabilidade penal decorre da não demonstrada culpa lato sensu - nulla poena sine culpa - dispensável seria a análise da argüição de dolo eventual.

No entanto, para que não se increpe a sentença de omissa, também esse ponto deve ser enfrentado.

O acusador público pretende demonstrar a existência de dolo com a omissão da conferência dos cálculos estruturais - fato que a denúncia atribui exclusivamente a Chendes -, com erros construtivos que em nada contribuíram para o desabamento, e com defeitos de acabamento, irrelevantes ao desate criminal da questão.

O simples enunciado do rol de fatos já constitui demonstração da inexistência de dolo. Todos já foram objeto de análise.

Mas não é só. Em nenhum momento a acusação demonstrou - e seu era o ônus - que Naya e Domingues tivessem, na imagem de HUNGRIA, atravessado o Rubicon e, na dúvida sobre o resultado desabamento, houvessem assumido o risco do evento ( Comentários, vol. I, t. 2, 2ª ed., p.114 ).

Na análise da prova, o comportamento humano a ser presumido é o normal, o comum, o rotineiro. As anomalias, os desvios, as aberrações necessitam de ser provados e demonstrados. E não se pode admitir como séria, segundo a nesse ponto irrefutável argumentação do Professor Zaffaroni, a alegação de que o controlador da empresa e seu administrador tivessem sequer admitido a possibilidade do desabamento, fato que os levaria, como levou, à ruína comercial e ao descrédito pessoal.

No dolo eventual o agente, além de arriscar-se, dá seu assentimento ao resultado. Não há confiança de que o evento não ocorra e sim assunção consciente de que ele pode acontecer e, não obstante, o caminho escolhido continua a ser resolutamente trilhado. A previsão do resultado não desvia o agente do rumo, não detém e não paralisa sua ação. Quando tal não ocorre ou não fica plenamente demonstrado, não há que se falar em dolo eventual ou, no mínimo, não há como acolher a acusação.

No caso, nada, mas nada mesmo, autoriza a conclusão de que Naya e Domingues tivessem em qualquer momento agido com indiferença a um resultado que se apresentava como possível.

A acusação, nesse ponto, inscreve-se nos capítulos da teratologia forense.

TRIAL BY MEDIA

O fato, como já acentuado anteriormente, causou profunda comoção. A dor e a revolta das vítimas são compreensíveis e devem ser respeitadas. Nenhuma reparação será integral e seu inconformismo e até mesmo seus excessos devem ser tolerados.

Os meios de comunicação, cumprindo seu dever de informar, deram ao evento destaque e relevo. Os réus, principalmente Naya, foram expostos ao público e tiveram suas vidas investigadas e devassadas.

Até aí, nada demais. Mas quem folhear os diários e periódicos da época ou pesquisar o noticiário transmitido pelo rádio e pela televisão, muitos deles anexados ao processo, perceberá que anteriormente, muito anteriormente, ao término do inquérito policial instaurou-se no país, principalmente no Rio de Janeiro, autêntico trial by media.

As supostas causas do desabamento eram francamente listadas e repetidas antes mesmo da conclusão dos exames periciais. Os culpados pela tragédia, antecipadamente mostrados e condenados pelos media, eram submetidos à execração pública e apontados para linchamento pelos mais exaltados. Argamassa era exibida na televisão como se fosse concreto, reboco era esfarinhado entre os dedos em meio a gritos de que tinha sido utilizado como concreto, impurezas encontradas na massa eram apresentadas como causa da ruína do edifício.

Verificou-se depois que o Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança, que o Instituto Nacional de Tecnologia e que dois insuspeitos professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro consideraram o concreto de boa qualidade, afastaram as hipóteses de utilização de areia da praia e de uso de água imprópria na sua preparação.

Mas nem isso fez cessar o autêntico Delenda Naya que desde o desabamento era repetido quase que diariamente nos órgãos e pelos órgãos de comunicação.

A divulgação do laudo foi falseada e distorcida. O Jornal Nacional, principal informativo da televisão, noticiou de forma desleal - mais com os seus espectadores do que com os envolvidos - as conclusões da prova técnica, fazendo crer que no laudo existia o que ali não se continha, que os peritos tinham concluído de uma forma quando na realidade suas conclusões eram outras.

Havia divergências entre os experts oficiais e os professores que, a convite do Instituto Nacional de Tecnologia, acompanharam e participaram dos exames. Mas isso sequer foi mencionado. Tratava-se de matéria técnica, de assimilação mais difícil, de divulgação mais árida. Optou-se então pela simples e escancarada distorção. Frases foram destacadas e, para dar credibilidade à indignação estudada do narrador ou narradora, mostradas em close-up sem qualquer menção ao texto que lhes dava sentido. Aliás, a técnica sequer era original. Já tinha sido empregada no resumo de famoso debate eleitoral.

Há nos autos parecer técnico do perito Mário Pessanha Bonfatti (fls. 736/742) em que as distorções, os desvios e até mesmo as inversões são cuidadosamente analisadas e enumeradas. Basta lê-lo para constatar que, enquanto o narrador falava em erro generalizado na construção do Palace II, erro gravíssimo no cálculo dos pilares do prédio, e que para os peritos o que causou o desmoronamento foi a quantidade de material, bem menos do que o necessário e não a qualidade, a câmera, para dar credibilidade às suas palavras, mostrava em close-up as expressões erro generalizado e erro gravíssimo nos pilares. Pouco importava que o laudo tivesse apontado como causa determinante o erro generalizado no dimensionamento dos pilares e, principalmente, o erro gravíssimo nos pilares P4A e P44A, portanto, erros de cálculo. O locutor falava em erro de construção, afirmação falsa a que recursos técnicos tentaram dar credibilidade.

É claro que se pode discordar do laudo, é evidente que se podem apontar erros em sua elaboração, é indiscutível que até a competência e a honorabilidade dos peritos podem ser questionadas. O que não se pode é falsificar suas conclusões, distorcer seu pensamento, usar recursos visuais para transformar a mentira em verdade, embair a boa-fé do telespectador, colocar a tecnologia a serviço da peta.

Mais uma vez os media condenaram sem julgar e dessa feita condenaram mentindo.

Praticou-se o que o Professor MÁRIO STOPPINO exemplificou como a forma mais simples de manipulação da informação: a mentira. Falsas informações sobre acontecimentos relevantes foram fornecidas ao público e este, tomando-as por verdadeiras, julgou que escolhia livremente posicionando-se contra os réus e exigindo seu justiçamento e não seu julgamento (Dicionário de Política, NORBERTO BOBBIO e outros, p.729).

O fato vem se repetindo em casos notórios mas, felizmente, há nos próprios meios de comunicação quem se mostre preocupado e até arrependido.

O jornalista CLÓVIS ROSSI, severo crítico do Senhor Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência da República, lendo cartas dirigidas ao jornal pelo suspeito de ligações com o juiz Nicolau dos Santos Neto e a resposta do procurador Guilherme Schelb fez seu mea culpa e, sob o título Errei, admitiu que entre a suspeita e a condenação moral que procuradores e boa parte da mídia fizeram, faltou um elemento ( o devido processo legal ) que é um dos pilares insubstituíveis da vida civilizada e finalizou, admitindo com grandeza que a opinião pública tenha sede de sangue é compreensível e até justificável, ante a quantidade de escândalos a ela servidos dia sim, dia não nos últimos anos. Mas que jornalistas tenhamos nos prestado a tirar uma gota de sangue dos suspeitos para servir no altar de sacrifícios da ira popular, aí já é intolerável. Não é humano manter indefinidamente o acusado no \" corredor da morte \" moral até que se ache uma prova que de fato o incrimine (Folha de São Paulo, 14 de fevereiro de 2001).

No mesmo jornal, o colunista LUÍS NASSIF, apontando falhas do Poder Judiciário - e quem não as reconhece? - afirmou (16.12.00) que este é um país cuja herança cultural remonta à Inquisição. Os processos de linchamento, dos que são ou pensam diferentemente não poupam ninguém... e no qual se abre espaço para que juízes fracos se curvem ao chamado \" clamor das ruas\", permitindo a consumação de abusos contra os direitos individuais, razão pela qual dedicou a medalha recebida do Tribunal Regional Federal da 1ª Região aos valentes que investiram contra os linchadores e colocaram seus princípios acima de seu medo - o juiz que deu a sentença do caso Herzog; o promotor Eduardo Araújo da Silva, que pediu a libertação dos meninos acusados pelo crime do bar Bodega; a juíza Sandra de Santis de Mello, que não mandou a júri os rapazes que queimaram o pataxó; o juiz Helder Girão, que se voltou contra os abusos de seus pares e a jovem juíza Raecler Baldessa, que impediu que, sem base legal, se consumasse a prisão do empresário Luiz Estêvão.

Ao lado desses que preferiram a companhia tranqüila de sua consciência aos refletores da televisão, às notícias elogiosas dos media, aos aplausos dos que foram manipulados e pensam estar livremente a clamar por justiçamento, prefere se colocar este juiz. Sua companhia certamente não é a mais cômoda e a mais prenhe de elogios e louvores. Mas certamente é mais honrosa. Troco o sucesso das manchetes pela aprovação solitária e silenciosa de minha consciência, pois, como afirmou o filósofo OLAVO DE CARVALHO ( Época, 03 de julho de 2000) sobre outro caso rumoroso em que a justiça é diariamente intimidada a julgar como todos já julgaram, num tempo em que \" coragem \" significa posar de bom menino para as câmeras, sob os aplausos gerais e a proteção do lado mais forte, esse juiz pode não existir. Mas, se ele não existe, também não existe justiça.

A PENA

Tendo em conta as ponderações do artigo 59 do Código Penal, especialmente as gravíssimas conseqüências do fato - oito mortes e enormes danos materiais e morais aos proprietários e moradores de 176 apartamentos -, mas ponderando também seus ótimos antecedentes, sua excelente conduta social e o até então irrepreensível bom nome profissional, entendo que a apenação básica a ser imposta a José Roberto Chendes deve ficar a meio caminho entre o mínimo e o máximo, ou seja, dois anos, quantitativo que, na forma do disposto no artigo 258, 2ª parte, também do Código Penal, aumento de um terço, estabilizando-se a punição em dois anos e oito meses de detenção.

A pluralidade de vítimas fatais não autoriza o reconhecimento do concurso formal das infrações. Como crime de perigo comum, o desabamento pode atingir grande número de pessoas e a multiplicidade de mortos ou feridos configura crime único qualificado pelo resultado (MIRABETE, Manual de Direto Penal, 5ª ed., p. 84).

Presentes os requisitos do artigo 44 do Código Penal, o apenado faz jus à substituição da pena privativa da liberdade por duas penas restritivas de direito.

Assim, troco a punição corporal pela de prestação de serviços à comunidade, em estabelecimento escolhido pelo juiz da execução, à razão de uma hora por dia, durante dois anos e oito meses, e pela proibição do exercício da engenharia pelo mesmo tempo de dois anos e oito meses.

DISPOSITIVO

POSTO ISTO, julgo a denúncia procedente em parte e condeno JOSÉ ROBERTO CHENDES, por infração do artigo 256, § único, c/c o artigo 258, 2ª parte, ambos do Código Penal, às penas restritivas de direitos de prestação de serviços à comunidade, à razão de uma hora por dia, durante dois anos e oito meses e de proibição, por igual lapso temporal, do exercício da profissão de engenheiro; com fundamento no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal, absolvo SÉRGIO AUGUSTO NAYA e SÉRGIO MURILO DOMINGUES das acusações contra eles apresentadas.

Transitada em julgado, comunique-se a interdição temporária do exercício da engenharia pelo réu condenado ao Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA) e lance-se seu nome no rol dos culpados.

Dê-se conhecimento à Delegacia de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras de que estão levantadas as restrições à saída de Sérgio Augusto Naya do país.

O condenado responderá por um terço das custas.

Publique-se, registre-se, intimem-se e comunique-se.

Rio de Janeiro, 24 de maio de 2001

HERALDO SATURNINO DE OLIVEIRA

JUIZ DE DIREITO



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