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Decisão: Processo penal. Imunidade parlamentar material e nexo de causalidade.

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Imunidade Parlamentar Material e Nexo de Causalidade
Inq 617-RR* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA IMUNIDADE PARLAMENTAR EM SENTIDO MATERIAL (INVIOLABILIDADE). SUPERVENIÊNCIA DA EC 35/2001. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA. NECESSIDADE DE QUE OS "DELITOS DE OPINIÃO" TENHAM SIDO COMETIDOS NO EXERCÍCIO DO MANDATO LEGISLATIVO OU EM RAZÃO DELE. INDISPENSABILIDADE DA EXISTÊNCIA DESSE NEXO DE IMPLICAÇÃO RECÍPROCA. CONEXÃO OCORRENTE NA ESPÉCIE. PEDIDO DE ARQUIVAMENTO DEFERIDO. - A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, caput), que representa um instrumento vital destinado a viabilizar o exercício independente do mandato representativo, somente protege o membro do Congresso Nacional, qualquer que seja o âmbito espacial ("locus") em que este exerça a liberdade de opinião - ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa -, desde que as suas manifestações guardem conexão com o desempenho da função legislativa (prática "in officio") ou tenham sido proferidas em razão dela (prática "propter officium"), não obstante a superveniente promulgação da EC 35/2001, que não ampliou, em sede penal, a abrangência tutelar da cláusula de inviolabilidade. - A prerrogativa indisponível da imunidade material - que constitui garantia inerente ao desempenho da função parlamentar (não traduzindo, por isso mesmo, qualquer privilégio de ordem pessoal) - não se estende a palavras, nem a manifestações do congressista, que nenhuma relação tenham com o exercício do mandato legislativo. - É que a cláusula constitucional da inviolabilidade (CF, art. 53, caput), para legitimamente proteger o parlamentar, supõe que exista o necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício congressional, de outro. Doutrina. Precedentes. DECISÃO: A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. HAROLDO FERRAZ DA NÓBREGA, aprovado pelo eminente Chefe do Ministério Público da União, Dr. GERALDO BRINDEIRO, ao requerer o arquivamento deste inquérito (fls. 74/76), acentua que o ora indiciado - que é membro do Congresso Nacional - está protegido pelo manto da imunidade parlamentar em sentido material, no que se refere à entrevista jornalística, que, concedida a uma emissora de televisão, motivou a instauração da presente investigação penal (fls. 76): "Parece-me, porém, que está acobertado, nas suas declarações questionadas, o Deputado Federal Francisco Rodrigues, pela inviolabilidade de que cuida o artigo 53 da CF, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 35/2001. Cuida-se, no caso, de opiniões e palavras, vinculadas ao exercício do mandato. O contexto das expressões é uma entrevista de caráter político, indissociável da condição de Parlamentar do indiciado. Com estas considerações e parecendo-me que está o indiciado acobertado pela já referida inviolabilidade, requeiro o arquivamento do feito." (grifei) Mostra-se correta a promoção do Ministério Público Federal, pois, como se sabe, a cláusula inscrita no art. 53, caput, da Constituição da República, na redação dada pela EC nº 35/2001, exclui, na hipótese nela referida, a própria natureza delituosa do fato, que, de outro modo, tratando-se do cidadão comum, qualificar-se-ia como crime contra a honra, consoante acentua o magistério da doutrina (JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 532, item n. 15, 20ª ed., 2002, Malheiros; CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo I/187, 1995, Saraiva; LUIZ FLÁVIO GOMES, "Imunidades Parlamentares: Nova Disciplina Jurídica da Inviolabilidade Penal, das Imunidades e das Prerrogativas Parlamentares (EC 35/01)", "in" "Juizados Criminais Federais, seus Reflexos nos Juizados Estaduais e Outros Estudos", p. 94/97, item n. 4.9, 2002, RT; UADI LAMMÊGO BULOS, "Constituição Federal Anotada", p. 705/707, 4ª ed., 2002, Saraiva, v.g.). Se é certo, portanto, que a garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material representa importante prerrogativa de ordem institucional, não é menos exato que a Carta da República somente legitima a sua invocação, quando o membro do Congresso Nacional, no exercício do mandato - ou em razão deste - proferir palavras ou expender opiniões que possam assumir qualificação jurídico-penal no plano dos denominados "delitos de opinião". Impõe-se registrar, desse modo, presente esse contexto, que o exercício do mandato atua como verdadeiro suposto constitucional, apto a legitimar a invocação dessa especial prerrogativa jurídica, destinada a proteger, por suas "opiniões, palavras e votos", o membro do Congresso Nacional, independentemente do "locus" em que proferidas as expressões eventualmente contumeliosas. É por essa razão que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal tem destacado o caráter essencial do exercício do mandato parlamentar, para o efeito de legitimar-se a invocação da prerrogativa institucional assegurada, em favor dos membros do Poder Legislativo da União, pelo art. 53, caput, da Carta Política, sempre enfatizando, nas várias decisões que proferiu - quer antes, quer depois da promulgação da EC nº 35/2001 -, que a proteção resultante da garantia da imunidade em sentido material somente alcança o congressista (Deputado Federal ou Senador da República) nas hipóteses em que as palavras e opiniões por ele expendidas o tenham sido no exercício do mandato ou em razão deste (Inq 1.775-PR (AgRg), Rel. Min. NELSON JOBIM, Pleno), de tal modo que cessará essa especial tutela de caráter político-jurídico, sempre que deixar de existir, entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício legislativo, de outro, o necessário nexo de causalidade (RTJ 104/441, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO - RTJ 112/481, Rel. Min. SOARES MUÑOZ - RTJ 129/970, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 135/509, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 141/406, Rel. Min. CÉLIO BORJA - RTJ 155/396-397, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 166/844, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - RTJ 167/180, Rel. Min. FRANCISCO REZEK - RTJ 169/969, Rel. Min. CELSO DE MELLO - Inq 810-DF (Questão de Ordem), Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA). Cabe assinalar que a teleologia inerente à cláusula de inviolabilidade prevista no art. 53, caput, da Constituição da República revela a preocupação do constituinte de dispensar efetiva proteção ao congressista, em ordem a permitir-lhe, no desempenho das múltiplas funções que compõem o ofício parlamentar, o amplo exercício da liberdade de expressão, qualquer que seja o âmbito espacial em que concretamente se manifeste (RTJ 133/90), ainda que fora do recinto da própria Casa legislativa (RTJ 131/1039 - RTJ 135/509-510 - RT 648/318), desde que - cumpre insistir - as afirmações e os pronunciamentos emanados do membro do Poder Legislativo da União guardem conexão com o desempenho do mandato (prática in officio) ou tenham sido proferidos em razão dele (prática propter officium), conforme esta Suprema Corte tem assinalado em diversas decisões (RTJ 155/396-397, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno, v.g.). Esse entendimento jurisprudencial mostra-se fiel à mens constitutionis, que reconhece, a propósito do tema, que o instituto da imunidade parlamentar em sentido material existe para viabilizar o exercício independente do mandato representativo, revelando-se, por isso mesmo, garantia inerente ao congressista que se encontre no pleno desempenho da atividade legislativa (PONTES DE MIRANDA, "Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969", tomo III/10 e 43, 2ª ed., 1970, RT; JOÃO BARBALHO, "Constituição Federal Brasileira", p. 64, edição fac-similar, 1992, Senado Federal; PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vol. 2/625, 1990, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição de 1988", vol. V/2624-2625, item n. 204, 1991, Forense Universitária; MICHEL TEMER, "Elementos de Direito Constitucional", p. 129/130, item n. 5, 18ª ed., 2002, Malheiros, v.g.). O fato irrecusável é um só: a garantia da imunidade parlamentar representa um instrumento vital destinado a tornar mais efetiva a independência do congressista no exercício do mandato (PEDRO ALEIXO, "Imunidades Parlamentares", p. 59/65, 1961, Belo Horizonte; CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo I/187, 1995, Saraiva; RENÉ ARIEL DOTTI, "Curso de Direito Penal - Parte Geral", p. 398, item n. 25, 2001, Forense), razão por que não se justifica a outorga dessa especial prerrogativa ao legislador, quando eventualmente afastado do desempenho da representação política (RTJ 99/477, Rel. Min. DJACI FALCÃO - RTJ 99/487, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - RTJ 129/970, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 131/1039, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - RTJ 166/133, Rel. Min. NELSON JOBIM - RTJ 167/29, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - Inq 681-SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO - Inq 810-DF, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA - Inq 874-BA (AgRg), Rel. Min. CARLOS VELLOSO - Pet 1.113-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 26/02/1996). Impende registrar, ainda, por necessário, que, não obstante a nova fórmula redacional inscrita no art. 53, caput, da Constituição, resultante da promulgação da EC nº 35/2001, a garantia da inviolabilidade, que decorre da cláusula de imunidade parlamentar em sentido material, não se mostra absoluta - na realidade, inexistem direitos absolutos em nosso sistema normativo, como já o proclamou o Plenário desta Suprema Corte (RTJ 173/805-810, 807, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, nem se estende a qualquer declaração do congressista, pois o alcance normativo do preceito constitucional em referência abrange, unicamente, as manifestações vinculadas ao exercício do mandato legislativo ou feitas em razão deste, tal como adverte, em correto magistério, MICHEL TEMER ("Elementos de Direito Constitucional", p. 129, item n. 5, 18ª ed., 2002, Malheiros): "A inviolabilidade diz respeito à emissão de opiniões, palavras e votos. Opiniões e palavras que, ditas por qualquer pessoa, podem caracterizar atitude delituosa, mas que assim não se configuram quando pronunciadas por parlamentar. Sempre, porém, quando tal pronunciamento se der no exercício do mandato. Quer dizer: o parlamentar, diante do Direito, pode agir como cidadão comum ou como titular de mandato. Agindo na primeira qualidade não é coberto pela inviolabilidade. A inviolabilidade está ligada à idéia de exercício de mandato. Opiniões, palavras e votos proferidos sem nenhuma relação com o desempenho do mandato representativo não são alcançados pela inviolabilidade." (grifei) Essa mesma orientação - que se projeta na autorizada lição de DAMÁSIO E. DE JESUS ("Direito Penal - Parte Geral", vol. 1/684, item n. 8, 24ª ed., 2001, Saraiva), FERNANDO CAPEZ ("Curso de Processo Penal", p. 53/54, item n. 6.2, 7ª ed., 2001, Saraiva), ÁLVARO MAYRINK DA COSTA ("Direito Penal - Parte Geral", vol. I, tomo I/488, item n. 12, 6ª ed., 1998, Forense), UADI LAMMÊGO BULOS ("Constituição Federal Anotada", p. 705/707, 4ª ed., 2002, Saraiva), CELSO RIBEIRO BASTOS ("Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo I/187, 1995, Saraiva), ALEXANDRE DE MORAES ("Constituição do Brasil Interpretada", p. 1016-1017, item n. 53.2, 2002, Atlas), LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO/VIDAL SERRANO NUNES JUNIOR ("Curso de Direito Constitucional", p. 297, item n. 3, 6ª ed., 2002, Saraiva) e HELENO CLÁUDIO FRAGOSO ("Lições de Direito Penal - Parte Geral", p. 130, item n. 113, 12ª ed., 1990, Forense, v.g.) - foi exposta, em lapidar abordagem do tema, por RAUL MACHADO HORTA ("Estudos de Direito Constitucional", p. 597/600, item n. 3, 1995, Del Rey), que assim analisou a matéria ora em exame: "(...) É necessário fixar, todavia, que a inviolabilidade, como exprime o Direito Constitucional Brasileiro (...), está vinculada ao exercício do mandato ou das funções legislativas. E deve ser interpretada tendo em vista sua finalidade primordial, qual seja, a de assegurar a independência do Poder Legislativo e o livre exercício do mandato (...). O Parlamentar fica sujeito à aplicação do direito comum se o ato praticado não é motivado pelo exercício da função (...). A inviolabilidade preserva apenas os atos de exercício das funções parlamentares ou conexas com elas, e não os outros. É garantia da função e não é privilégio da pessoa (...). A inviolabilidade é imunidade de fundo. A opinião e o voto perdem qualificação penal, quando proferidos no exercício do mandato legislativo (...)." (grifei) Como precedentemente referido, esta Suprema Corte, já sob a égide da EC nº 35/2001, teve o ensejo de advertir que a cláusula constitucional da inviolabilidade continua a restringir-se, mesmo no que se refere aos aspectos penais, às manifestações do pensamento exteriorizadas, pelo parlamentar, no contexto do exercício do mandato legislativo, ou em razão deste, de tal modo que a prerrogativa da imunidade parlamentar em sentido material não protegerá o congressista naqueles casos em que as imputações moralmente ofensivas se apresentarem completamente desvinculadas do desempenho de qualquer das atribuições inerentes ao ofício congressual (Inq 1.710-SP (Questão de Ordem), Rel. Min. SYDNEY SANCHES, Pleno). Essa decisão plenária está resumida em valiosa publicação desta Corte ("Informativo/STF"), editada por servidores cuja excelente atuação merece o reconhecimento daqueles que atuam na área jurídica: "O Tribunal, apreciando queixa-crime ajuizada contra deputado federal, inicialmente, pronunciou-se no sentido de que a imunidade material dos deputados e senadores, prevista na nova redação dada pela Emenda Constitucional 35/2001 ao art. 53 da CF, abrange as opiniões, palavras e votos proferidos em virtude da condição de parlamentar, não alcançando as manifestações sobre matéria alheia ao exercício do mandato (...). Com esse entendimento, o Tribunal afastou a possibilidade de enquadramento da espécie na imunidade material, por se tratar de fatos imputados a parlamentar relativos à divergência interna de um escritório de advocacia, com manifestações do querelante e do querelado pela imprensa, fatos esses que não têm a mais remota relação com o exercício do mandato. (...)." (Informativo/STF n. 258, de 25/2 a 1º/3/2002) Essa, porém, não é a situação registrada nos presentes autos, eis que - tal como expressamente reconhecido pelo Ministério Público - a entrevista jornalística dada pelo congressista ora indiciado guarda conexão com o exercício do mandato legislativo (fls. 76). Desse modo, e considerando, sobretudo, a promoção da douta Procuradoria-Geral da República - que não vislumbrou, na espécie, ante as razões expostas, a existência de qualquer delito suscetível de persecução penal -, defiro o pedido de arquivamento, que, formulado pelo eminente Chefe do Ministério Público da União (fls. 74/76), qualifica-se como postulação de acolhimento irrecusável, segundo a jurisprudência firmada por esta Suprema Corte (RTJ 57/155 - RTJ 69/6 - RTJ 73/1 - RTJ 116/7, v.g.). Arquivem-se, em conseqüência, os autos do presente Inquérito (Lei nº 8.038/90, art. 3º, I).
Publique-se. Brasília, 24 de junho de 2002. Ministro CELSO DE MELLO
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