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STF – INQUÉRITO Nº 1.418-9 (DJU 08.11.01, SEÇÃO 1, P. 7)
PROCED.: RIO GRANDE DO SUL
RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
QTE.: OLORIVAL MELEU BRASIL
ADV.: SEBASTIÃO NILTON DE OLIVEIRA ORTIZ
QDO.: FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
EMENTA
PRESIDENTE DA REPÚBLICA. IMUNIDADE PENAL TEMPORÁRIA. O ALCANCE DO ART. 86, § 4°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, INAPLICABILIDADE AO CASO, POR NAO SE TRATAR DE ATO ESTRANHO AO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PRESIDENCIAL.
-A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4\", da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes.
-Tratando-se, no entanto, de atos praticados in officio ou propter officium, e desde que possuam qualificação penal, tomar-se-á constitucionalmente lícito instaurar, contra o Presidente da República, mesmo na vigência de seu mandato, a pertinente persecução penal, uma vez exercido, positivamente, pela Câmara dos Deputados, o controle prévio de admissibilidade da acusação penal (CF, art. 86, caput, c/c o art. 51, I).
CRIME CONTRA A HONRA. QUE1XA-CRIME: INSTRUMENTO DE MANDATO JUDICIAL.
INOBSERVÂNCIA DO ART. 44 DO CPP. IMPOSSIBILIDADE DE REGULARIZAÇÃO. CONSUMIÇÃO DO PRAZO DECADENCIAL. EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO PENAL.
-A ação penal privada, para ser validamente ajuizada, depende, dentre outros requisitos essenciais, da estrita observância, por parte do querelante, da formalidade imposta pelo art. 44 do CPP, que exige constem, da procuração, a indicação do nome do querelado e a menção expressa ao fato criminoso, bastando, para tanto, quanto a esta exigência, que o instrumento de mandato judicial contenha, ao menos, referência individualizadora do evento delituoso (RT 729/463), mostrando-se dispensável, em conseqüência - consoante diretriz prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RT 605/384 -RT 631/384) -a descrição minuciosa ou a menção pormenorizada do fato. Doutrina. Precedentes.
-A mera outorga de mandato com a cláusula \"ad judicia\" -lendo-se presente o que dispõe o art. 44 do CPP (que exige poderes especiais) –desatende as finalidades impostas por essa norma legal.
Embora supríveis as omissões (CPP, art. 568), a regularização do instrumento de mandato judicial somente poderá ocorrer, se ainda não consumada a decadência do direito de queixa (RT 609/444), pois, decorrido, in albis, o prazo decadencial, sem a correção do vício apontado, impor-se-á o reconhecimento da extinção da punibilidade do querelado.
Precedentes.
DECISÃO: Trata-se de ação penal privada promovida contra o Senhor Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República.
A peça acusatória imputa, ao ora querelado, com fundamento no Código Penal, a prática do crime de injúria (fls. 2).
Cabe assinalar, desde logo, por necessário, que a infração penal atribuída ao Senhor Presidente da República teria sido cometida in officio, não se mostrando estranha, desse modo, ao exercício de suas altas funções, razão pela qual não incide, no caso ora em exame, a cláusula de imunidade penal temporária instituída pelo art. 86, § 4°, da Constituição Federal, cuja aplicabilidade - segundo enfatiza o magistério da doutrina (UADI LAMMEGO BULOS, \"Constituição Federal Anotada\", p. 815/816, 2000, Saraiva;
ALEXANDRE DE MORAES, \"Direito Constitucional\", p. 434/436, item n. 3.22, 10º ed., 2001, Atlas; JULIO FABBRINI MIRABETE, \"Código de Processo Penal Interpretado\", p. 308, item n. 86.3, 7. ed., 2000, Atlas; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, \"Comentários à Constituição de 1988\", vol. V/2946, item n. 575, 1991, Forense Universitária; IVES GANDRA MARTINS/CELSO RIBEIRO BASTOS, \"Comentários à Constituição do Brasil\", vol. 4, tomo II/462, 1997, Saraiva; WALTER CENEVIVA, \"Direito Constitucional Brasileiro\", p. 186, item n. 6, 1989, Saraiva, v.g.) -tem o efeito de impedir, durante a vigência do mandato executivo, a instauração da persecutio criminis, contra o Chefe de Estado, desde que os atos ou omissões, que lhe sejam imputados, revelem-se estranhos ao desempenho das atribuições presidenciais.
Não é essa, porém, a hipótese constante deste procedimento penal, em que o delito contra a honra, atribuído ao Senhor Presidente da República, teria sido por este praticado propter officium (fls. 2).
Isso significa, portanto, que a natureza do ilícito penal, o momento em que supostamente cometido e a circunstância de haver sido alegadamente praticado no contexto das atividades presidenciais acentuam a possibilidade constitucional de submeter-se, no caso ora em exame, o Chefe do Poder Executivo da União, à persecução penal do Estado, consoante já proclamou esta Suprema Corte, quando interpretou e fixou o sentido e o alcance da norma inscrita no art. 86, § 4°, da Constituição da República (RTJ 143/710-711, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RTJ 144/136, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 146/467-468, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Desse modo, passo a apreciar a queixa-crime promovida contra o Senhor Presidente da República.
O eminente Chefe do Ministério Público da União, Dr. GERALDO BRINDEIRO, ao manifestar-se nestes autos, opinou pela rejeição liminar da presente queixa-crime, nos seguintes termos (fls. 20):
\"Por exigência expressa do art. 44, do Código de Processo Penal, o instrumento de mandato para proposituro de queixa-crime deve conter a menção do fato criminoso. À toda evidência, a procuração acostada a fls. 10 não atende tal exigência; impondo-se a rejeição liminar da ação penal, na forma do art. 43, inciso II, da Lei Adjetiva Penal.\" (grifei)
O Senhor Procurador-Geral da República sustenta, portanto, a existência de causa que inviabilizaria, no plano formal, a válida instauração de persecução penal contra o Chefe do Poder Executivo da União, eis que descumprida, pela parte querelante, a determinação constante do art. 44 do CPP.
Entendo assistir plena razão ao eminente Procurador-Geral da República.
É que o instrumento de mandato judicial em causa, outorgado ao Ilustre Advogado do ora querelante (fls. 10), não preenche os requisitos inscritos no art. 44 do CPP, eis que apenas indica o nome do ora querelado, omitindo-se, no entanto, na referência individualizadora do fato criminoso a ele imputado, desatendendo, desse modo, a orientação firmada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Inq. 1.610-DF, Rel. Min. MARCO AURELIO –Inq. 1.238-SP, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – Inq. 1.610-MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), descumprindo, assim, \"a finalidade a que visa o artigo 44 do Código de Processo Penal, e que é a da fixação da responsabilidade por denunciação caluniosa no exercício do direito personalíssimo de queixa\" (RTJ 161/777, Rel. Min. MOREIRA ALVES - grifei).
Na realidade, a ação penal privada, para ser validamente ajuizada, depende, dentre outros requisitos essenciais, da estrita observância, por parte do querelante, da formalidade imposta pelo art. 44 do CPP, que exige constem, da procuração, a indicação do nome do querelado e a menção expressa ao fato criminoso, bastando, para tanto, quanto a esta exigência, que o instrumento de mandato judicial contenha, ao menos, referência individualizadora do evento delituoso (RT 729/463), mostrando-se dispensável, em conseqüência – consoante diretriz prevalecente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RT 605/384 – RT 631/384) a descrição minuciosa ou a menção pormenorizada do fato.
Esse entendimento - que se reflete na jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 432/285 -RT 443/442 -RT 492/353 –RT 514/334- RT 740/543) -encontra suporte em autorizado magistério doutrinário (DAMASIO E, DE JESUS, \"Código de Processo Penal Anotado\", p, 50, 14ª ed., 1998, Saraiva; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, \"Processo Penal\", voL 1/466, item n, 3, 11ª ed.; 1989, Saraiva; HÉLIO TORNAGHI, \"Comentários ao Código de Processo Penal\", voL I, tomo 2°, p. 89, 1956, Forense; ADALBERTO JOSÉ Q. T, DE CAMARGO ARANHA, \"Crimes contra a Honra\", p. 143, item n. 4, 1995, Saraiva; E. MAGALHAES NORONHA, \"Curso de Direito Processual Penal\", p. 35, item n. 13, 19ª ed., 1989, Saraiva; FERNANDO CAPEZ, \"Curso de Processo Penal\", p. 125, item n. 12.2, 2ª ed. 1998, Saraiva, v.g.), como se evidencia da lição exposta por JULIO FABBRINI MIRABETE (\"Código de Processo Penal Interpretado\", p. 198/199, item n. 44.1, 7. ed., 1999, Atlas):
\"Além de preencher os mesmos requisitos da denúncia ( art, 41 ), a queixa deve ser apresentada pelo ofendido, ou seu representante legal, mediante procurador com ‘poderes especiais’, ou seja, com instrumento de mandato em que conste cláusula específica a respeito da propositura da ação privada por determinado fato criminoso. É compreensível a exigência de mandato com poderes especiais, uma vez que, entre as sérias conseqüências de uma ação penal, está, inclusive, a possibilidade de ser imputada, ao querelante, a prática da crime de denunciação caluniosa (art, 339 do CP). Não é idônea para a propositura a procuração com a simples cláusula ad judicia, ou a outorgada apenas para acompanhar o inquérito policiaL\" (grifei) De outro lado, nem se alegue que seria lícito, ao ora querelante, promover, a qualquer tempo, a regularização do instrumento de mandato judicial, nos termos do que dispõe o art. 568 do CPP.
Essa providência já não mais se mostra juridicamente viável, em virtude da consumação, in albis, no caso ora em exame, do prazo decadencial de seis (6) meses a que se refere o art, 38 do CPP.
A medida em questão somente revelar-se-ia possível, se a omissão ora constatada pudesse ser suprida dentro do prazo decadencial em questão, consoante adverte DAMASIO E. DE JESUS (\"Código de Processo Penal Anotado\", p. 50, 14. ed. 1998, Saraiva), com fundamento em diretriz firmada pela jurisprudência dos Tribunais (RT 432/285 -RT 514/334 -RT 539/322 RT 544/380 - RT 545/378.
Sendo assim, tendo em vista as razões expostas, e considerando, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da RepÚblica, nego seguimento à presente ação penal privada, eis que desatendida a determinação imposta pelo art. 44 do CPP, não bastando, para esse efeito, a mera outorga de mandato com a cláusula adjudicia (RT 492/353).
Com o decurso, in albis, do prazo decadencial, sem que, nele, o querelante houvesse suprido, tempestivamente, a omissão referida, impõe-se, no caso ora em exame, o reconhecimento da extinção da punibilidade do ora querelado, consoante entendimento jurisprudencial prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RT 609/444).
Desse modo, julgo extinta a punibilidade do ora querelado (CP, art. 107, IV, c/c o art. 61, caput, do CPP).
Arquivem-se os presentes autos.
Publique-se
Brasília, 31 de outubro de 2001.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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