As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto
MPDFT E LEGITIMIDADE PARA RECORRER (TRANSCRIÇÕES)
RECURSO ESPECIAL 262.178-DF (PUBLICADO NO DJU 24.11.2000)
RELATÓRIO
O
Tribunal de Justiça do Distrito Federal concedeu habeas corpus para livrar a
recorrida da ameaça de prisão conseqüente a sucumbência em ação de depósito
fundada no inadimplemento de contrato de financiamento com cláusula de alienação
fiduciária em garantia (f. 17).
Da
decisão, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios interpôs
recurso especial, fundado na negativa de vigência dos arts. 904 e parágrafo único
do C. Pr. Civil e no art. 4º do Dl. 911/69, além de dissídio de jurisprudência.
Simultaneamente,
interpôs recurso extraordinário, por contrariedade ao art. 5º, LXVII, da
Constituição.
Do
recurso especial, não conheceu o Superior Tribunal de Justiça (REsp 150.112),
por acórdão da lavra do em. Ministro Felix Fischer, resumido na ementa:
\"HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. INADIMPLÊNCIA.
CONCESSÃO DA ORDEM. RECURSO ESPECIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. ILEGITIMIDADE.
O Ministério Público não tem legitimidade para interpor recurso especial contra decisão concessiva de writ, impetrado contra prisão civil decretada em virtude de inadimplência em contrato de alienação fiduciária.
Embora
a decisão recorrida tenha sido proferida em sede de habeas corpus, a relação
de direito material que deu origem à impetração envolve apenas direitos
privados. Inexistência de qualquer interesse público.
Recurso não conhecido.\"
Dessa decisão, o presente RE, do MPDFT, que aduz (f. 137/138):
\"No caso em exame, o v. acórdão recorrido sustentou que, conquanto
se cuidasse de habeas corpus - e estivesse em foco, assim, o jus libertatis - o
Ministério Público não poderia agir na defesa da ordem jurídica, em que pese
a claríssima proclamação, nesse sentido, do art. 127 da Lei Maior, e
inexistisse indício de que a coerção resultasse de ilegalidade ou de abuso de
poder.
Pouco
importa, d.m.v., se a relação ente credor e devedor envolvera, na origem,
\"direitos privados\". Se a ação de depósito foi julgada procedente e
a paciente declarada depositária infiel, a respectiva prisão se impunha como
determinação legal.
Daí,
pois, a legitimação do Ministério Público para agir em defesa da ordem jurídica
e na fiscalização da lei.
O
Supremo Tribunal Federal, aliás, invariavelmente, tem provido os recursos
extraordinários interpostos pelo MPDFT, contra ordens de habeas corpus
deferidos pelo TJDFT, reputando, pois, legítima a atuação do parquet na hipótese
em lide.
A legitimidade do Ministério Público para interpor recurso contra a concessão (indevida!) de habeas corpus decorre, insista-se, da própria Constituição Federal (art. 127), na defesa da ordem jurídica, não se podendo invocar, por isso mesmo, a par da estatura do remédio heróico, \"inexistência de qualquer interesse público\".\"
Sustenta a petição, de esmerada feitura, a \"estatura
constitucional da legitimidade outorgada ao Ministério Público para atuar nas
decisões concessivas de habeas corpus\", a partir do art. 127 da Constituição.
[...]
Irroga-se
ainda à decisão recorrida a contrariedade aos arts. 105, III, a e 5º, XXXV,
da Constituição - por não haver conhecido do recurso especial cabível e
corretamente interposto - e ao art. 5º, LXVIII, pois concedido o habeas corpus
\"independentemente de resultar a coerção de ilegalidade ou abuso de
poder\".
Para
indeferir o RE, assentou o em. Ministro Costa Leite, Vice-Presidente do Tribunal
a quo (f. 149):
\"O recurso esbarra em óbice preliminar. É que as funções do
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios se restringem às causas
de competência do Tribunal de Justiça e Juízes do Distrito Federal e Territórios
(art. 149, Lei 8.625/93, LC 75/93), logo, nesta Corte, não pode o parquet local
recorrer como custos legis para o Pretório Excelso. In casu, refoge-lhe a
legitimidade.\"
Informa a Secretaria ainda não se haver remetido ao STF o primeiro RE da
decisão local, já admitido.
O Ministério Público Federal - parecer da lavra do il.
Subprocurador-Geral Edinaldo de Holanda Borges - opinou pelo não conhecimento
do RE, verbis (f. 101/103):
\"Recorre extraordinariamente o Ministério Público do Distrito
Federal contra decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
A
vertente postulação é subscrita por Promotor de Justiça e pelo
Vice-Procurador-Geral de Justiça, representantes do \"Parquet\" do
Distrito Federal.
Emana,
\"prima facie\", a discussão sobre a legitimidade do Ministério Público
local para recorrer de decisão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, mesmo
no exercício do \"custos legis\", face ao disposto no artigo 149, da
Lei Complementar nº 75, de 20.05.93, verbis:
\"O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios exercerá
as suas funções nas causas de competência do Tribunal de Justiça e dos Juízes
do Distrito Federal e Territórios.\"
A respeito já decidiu esse Colendo Supremo Tribunal, entendendo ilegítimo
o Ministério Público para postular em grau jurisdicional diferente de sua
atribuição, nos seguintes termos:
\"RECURSO EXTRAORDINÁRIO - Interposição por Promotor Público, da
decisão do Tribunal de Justiça do Estado concessiva de \"Habeas
corpus\" - Inadmissibilidade - Parte ilegítima - Não conhecimento\"
(RT 466/424).
[...]
Ante o exposto, o alvitre é no sentido do não conhecimento da postulação
extrema.\"
É o relatório.
Voto: Alicerçam-se a decisão que indeferiu o apelo e o parecer da
Procuradoria-Geral na ilegitimidade do Ministério Público do Distrito Federal
para interpor recurso extraordinário contra acórdão do Superior Tribunal de
Justiça, tomado em recurso especial que interpusera.
A
solução do problema se me afigura mais complexa do que pareceu aos ilustres
signatários dos dois pronunciamentos.
É
que esse - porque compreendido no Ministério Público da União (CF, art. 128,
d) - se insere, nessa condição, no campo normativo da lei complementar federal
que estabelecerá \"a organização, as atribuições e o estatuto\" de
todo o Ministério da União - por iniciativa concorrente do Procurador-Geral da
República, que lhe chefia o conjunto de ramos (CF, art. 128, § 1º) e do
Presidente da República (CF, art. 61, § 1º, II, d, primeira parte);
simultaneamente, contudo, na parte final dessa alínea d, a Carta Fundamental
previu a edição, mediante iniciativa privativa do Presidente da República, de
\"normas gerais para a organização\", não só \"do Ministério Público
dos Estados\", mas também do mesmo \"Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios\".
Hugo
Mazzilli (Introdução ao Ministério Público, Saraiva, 1977, p. 75 e também
Regime Jurídico do Ministério Público, Saraiva, 3ª ed., 1976, 262 ss)
critica que, dada a \"tradição legislativa de só admitir como lei
complementar a que foi prevista nessa qualidade pela Constituição\", se
tenha entendido \"devesse ser lei ordinária a que estipula as normas gerais
de organização do Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal e
Territórios\".
Esse
entendimento, que reputa incorreto, anota Mazzilli, deu ensejo a absurdos que
enumera, os primeiros dos quais conseqüentes, precisamente, da dupla inserção
do MPDFT no âmbito normativo da lei complementar do MPU e na lei, tida por
ordinária, das normas gerais de organização dos Ministérios Públicos
locais, incluído o do Distrito Federal e eventuais Territórios, a saber:
\"...a) como uma lei ordinária federal poderia fixar normas gerais
para os Ministérios Públicos dos Estados e o do Distrito Federal e Territórios,
que é organizado por lei complementar federal?
b) como poderia uma lei ordinária ser de observância compulsória pela
lei complementar federal que deveria organizar o Ministério Público da União?\"
Certo, a essas interrogações adstritas à situação singular do MPDFT,
o ilustre especialista do Ministério Público acresce uma interrogação, quiçá
de maior vulto, acerca da relação entre a lei federal de normas gerais e a
disciplina estadual de organização do Ministério Público local:
\"...c) como poderia uma lei ordinária federal, quebrando o princípio
federativo, fixar normas gerais de observância obrigatória para o constituinte
estadual e para a legislação complementar à Constituição estadual\".
Chega daí - embora não lhe dê expressamente o nome - à
inconstitucionalidade da L. 8.625/93, no que diga respeito à organização dos
Ministérios Públicos locais e à conseqüente sobrevivência por recepção da
LC 40/81, que a precedera, por força da EC 7/77, sob o regime decaído.
E argumenta (Regime Constitucional, cit., p. 268):
\"...qual a natureza da lei que deve fixar normas gerais de organização
do Ministério Público? Por serem essas normas gerais de observância obrigatória
pelos Estados-membros da Federação, a par dos princípios diretamente fixados
na própria Constituição da República, seu objeto constitui substancialmente
matéria de lei complementar à Constituição, não só por versar a organização
de uma instituição com especial assento constitucional, mas sim e
principalmente porque se trata de limitar os direitos da Federção com relação
aos seus Estados-membros e vice-versa, o que só pode ser feito no Estatuto Político
máximo ou em lei complementar a ele.
Por
isso que, no regime da Carta anterior, a opção fora expressa e correta, desde
a Emenda Constitucional n. 7/77: \"Lei Complementar, de iniciativa do
Presidente da República, estabelecerá normas gerais a serem adotadas na
organização do Ministério Público estadual, observado o disposto no § 1º
do artigo anterior\".
Não
há negar, faltou técnica à Constituição de 1988, que não foi expressa
quanto à necessidade de lei complementar para fixar as mesmas normas gerais
para organização do Ministério Público dos Estados.
Nem
por isso, porém, deixa de decorrer do sistema o status de norma complementar à
Constituição, para a lei ora em exame...\".
A busca de um critério material de identificação da lei complementar
preocupou juristas de justa nomeada, a partir de Victor Nunes (Leis
Complementares da Constituição, RDA 7/jan-mar 1947 e Problemas de Direito Público
e Outros Problemas, Imprensa Nacional, 1996, II/1) - que enfrentou o tema antes
que a Constituição fizesse menção à categoria - e do trabalho pioneiro de
Geraldo Ataliba (Lei Complementar na Constituição, ed. RT, 1971), já sob a
Carta de 69, que não se utilizava da expressão - como já o haviam feito as
EECC 17 e 18, de 1965 - mas lhe passara a conferir especificidade formal com a
exigência do quorum de maioria absoluta.
Ataliba
(ob. cit., p. 32) já renunciava, contudo, à idéia de impor a todas as leis
materialmente complementares aquela marca e rigidez processual, que, asseverou,
\"não se estende (...) a todas as leis complementares, mas somente às
expressamente previstas no texto constitucional\".
\"Quanto
às demais hipóteses\" - concluiu - \"que comportam lei complementar,
por causa da natureza da disposição constitucional regulamentada - ficam,
formalmente, em situação de inferioridade. Equiparam-se, quanto ao seu regime
jurídico, às leis ordinárias\".
Essa
postura, desde então, parece amplamente dominante na doutrina e pode dizer-se
consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal, que afirma exclusiva das hipóteses
taxativamente enumeradas na Constituição a exigência de lei complementar em
sentido formal, vale dizer, aprovada por maioria absoluta de ambas as Câmaras,
do que decorre a impossibilidade de reclamá-la sempre que a Lei Fundamental se
restrinja a reservar à lei, tout court, o trato de determinada matéria (v.g.,
ADInMC 1.087, 1º.2.95, Moreira, DJ 7.4.95; RE 225.602, Pl., 25.11.98, Velloso).
Uma
circunstância parece ter refreiado os ensaios de caracterização material da
lei complementar: refiro-me à evidência da arbitrariedade com a qual a
Constituição de 1988 elegeu os temas para as quais a exigiu, de modo a
desafiar qualquer esforço de descobrir-lhe um critério diretor.
Testemunhou-o
mais de uma vez - em depoimento pessoal de constituinte ilustre - o em. Ministro
Nelson Jobim, mostrando como, diversas vezes, a prescrição de lei complementar
na Constituição só se explica como técnica de compromissos dilatórios em
matérias cuja disciplina nenhuma das correntes contrapostas quis confiar aos
caprichos conjunturais da maioria simples (cf, e.g., os votos do Ministro Jobim
no RE 225.602 cit. e na ADInMC 1.480): parece constituírem exemplos eloqüentes
o da proteção do trabalhador contra a despedida arbitrária (CF, art. 7º, I);
o da disciplina do direito de greve dos servidores públicos (onde a previsão
de lei complementar veio a ser abolida pela EC 19/98) e o do procedimento
especial e sumário para o processo de desapropriação para a reforma agrária
(art. 184, § 3º).
A
isso quiçá se objetasse que, da existência de hipóteses arbitrárias de
previsão de lei complementar, não seria dado inferir a inexistência de sua
compulsoriedade, posto que implícito, quando decorrente do alcance nacional - e
não apenas federal - da matéria a regular.
A
objeção não elide, contudo, a força do argumento dogmático de que reclamar
o processo mais complexo da lei complementar onde não o preveja a Constituição
é restrição indevida à regra geral, mais flexível (CF, art.47), do poder
legislativo das casas parlamentares.
Certo,
das lúcidas observações de Hugo Mazzilli - não obstante os reparos feitos -
resta incólume, com pertinência específica ao MPDFT, a crítica à solução
paradoxal de submeter-lhe a organização, a um só tempo, às normas gerais de
lei ordinária federal e à lei complementar, igualmente federal, relativa a
todo o Ministério Público da União, no qual está compreendido.
Na
linha da ementa, reduzida a normas gerais sobre a organização do Ministério Público
dos Estados, a L. 8.625 - não obstante autodenominada Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público - preceitua:
\"Art. 2º (...)
Parágrafo único. A organização, atribuições e estatuto do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios serão objeto da Lei Orgânica do
Ministério Público da União.\"
Levada essa exclusão às últimas conseqüências, dela resultaria a
inaplicabilidade ao MPDFT do art. 25, IX, da L. 8.625/93, que inclui, entre as
funções gerais do Ministério Público dos Estados, \"interpor recursos ao
Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça\".
\"Art. 149. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
exercerá as suas funções nas causas de competência do Tribunal de Justiça e
dos Juízes do Distrito Federal e dos Territórios\".
Creio, no entanto, que o problema comporta solução diversa, capaz de
evitar ou, pelos menos, de minimizar a disparidade, em ponto tão relevante,
entre o Ministério Público dos Estados e o do Distrito Federal, cujas funções,
conforme as leis processuais, são de regra idênticas e que, ademais, quis a
Constituição, na parte final do art. 61, § 1º, II, d, que se regessem por
normas gerais comuns de uma lei nacional.
A
partir desses dois pontos, é possível - para evitar ou minimizar a disparidade
de tratamento que o sistema não parece admitir - a solução de dar leitura
uniforme, tanto quanto possível, dos dois dispositivos aparentemente diversos -
o art. 25, IX, da L. 8.625/93 e o art. 149 da LC 75/93 -, de modo a entender que
tanto o Ministério Público dos Estados quanto o do Distrito Federal são
igualmente legitimados para a interposição dos recursos da competência do
Superior Tribunal de Justiça (v.g., o REsp, o RHC ou o RMS), mas que a legitimação
de ambos - ou, pelos menos, a do MPDFT - para recorrer ao Supremo Tribunal é
adstrita ao recurso extraordinário das decisões de primeiro ou segundo grau
das respectivas Justiças locais, não para interpor recurso ordinário ou
extraordinário de decisões do STJ para o Supremo Tribunal.
Já
no que diz com o Ministério Público dos Estados, à mesma restrição se pode
opor que o art. 25, IX, da L. 8.625/93, não a fez.
É
certo, porém, que o sistema da L. 6.825/93, como afinal sancionada e
promulgada, quiçá induza à mesma limitação.
Mas
- como recorda Mazzilli (Regime Jurídico do Ministério Público, cit., p. 303)
- a inovação acabou vetada, motivado o veto presidencial em que \"a
representação do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal é
exclusiva do Procurador-Geral da República, e junto ao Superior Tribunal de
Justiça, cabe ao Ministério Público Federal\".
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040