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Decisões: Direito ao silêncio ou direito de não auto-incriminar-se. Validade, inclusive frente às CPIs.

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

STF - HABEAS CORPUS N. 80.530-2 - (DJU 14.11.2000, p. 40)

PROCED. : PARÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE. : EUGÊNIA SILVA DE FREITAS

IMPTE. : EUGÊNIA SILVA DE FREITAS

ADV. : OCTAVIO AVERTANO ROCHA

COATOR : PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO SOBRE

OCUPAÇÃO DE TERRAS PÚBLICAS NA AMAZÔNIA

DECISÃO: Defiro o pedido de medida liminar, para o fim de assegurar, à ora paciente, o direito de permanecer em silêncio, se e quando inquirida sobre fatos cujo esclarecimento possa importar em sua auto-incriminação, bem assim para garantir-lhe a prerrogativa de não ser conduzida coercitivamente, sob escolta policial, para depoimento perante a CPI/Amazônia, enquanto não receber regular intimação, nos termos da legislação processual penal.

Tenho enfatizado, em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, a propósito da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação (HC 79.812-SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO), que assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter em silêncio, sem se expor - em virtude do exercício legítimo dessa faculdade - a qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano (Nemo tenetur se detegere).

É que indiciados ou testemunhas dispõem, em nosso ordenamento jurídico, da prerrogativa contra a auto-incriminação, consoante tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 78.814-PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 79.244-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.).

Cabe enfatizar que o privilégio contra a auto-incriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (NELSON DE SOUZA SAMPAIO, \"Do Inquérito Parlamentar\", p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, \"Comissões Parlamentares de Inquérito\", p. 65 e 73, 1999, Ícone Editora; PINTO FERREIRA, \"Comentários à Constituição Brasileira\", vol. 3, p. 126-127, 1992, Saraiva, v.g.) - traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer pessoa pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política. Convém enfatizar, neste ponto, que, \"Embora aludindo ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (...), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação\" (ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, \"Direito à Prova no Processo Penal\", p. 113, item n. 7, 1997, RT - grifei).

É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu esse direito também em favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo, então, que \"Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la\" (RTJ 163/626, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei).

Com o explícito reconhecimento dessa prerrogativa, constitucionalizou-se, em nosso sistema jurídico, uma das mais expressivas conseqüências derivadas da cláusula do due process of law.

Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado, possui, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio, consoante reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Esse direito, na realidade, é plenamente oponível ao Estado, a qualquer de seus Poderes e aos seus respectivos agentes. Atua, nesse sentido, como poderoso fator de limitação das próprias atividades de investigação e de persecução desenvolvidas pelo Poder Público (Polícia Judiciária, Ministério Público, Juízes, Tribunais e Comissões Parlamentares de Inquérito, p. ex.).

Cabe registrar que a cláusula legitimadora do direito ao silêncio, ao explicitar, agora em sede constitucional, o postulado segundo o qual Nemo tenetur se detegere, nada mais fez senão consagrar, desta vez no âmbito do sistema normativo instaurado pela Carta da República de 1988, diretriz fundamental proclamada, desde 1791, pela Quinta Emenda que compõe o Bill of Rights norte-americano.

Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. Trata-se de prerrogativa, que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (\"Direito à Prova no Processo Penal\", p. 111, item n. 7, 1997, RT), \"constitui uma decorrência natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em seu próprio prejuízo...\".

O direito de o indiciado/acusado (ou testemunha) permanecer em silêncio - consoante proclamou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em Escobedo v. Illinois (1964) e, de maneira mais incisiva, em Miranda v. Arizona (1966) - insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E esse direito ao silêncio inclui, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o depoente negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial, judiciária ou legislativa, a prática de qualquer infração penal.

É por essa razão que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 68.742-DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO (DJU de 02/04/93), proclamou que o réu, ainda que negando falsamente a prática do delito, não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu status poenalis.

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, em sede de repressão criminal, enfatizou que qualquer indivíduo submetido a procedimentos investigatórios ou a processos judiciais de natureza penal \"tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal\" (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Em suma: o direito ao silêncio constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República.

Cabe enfatizar, por necessário - e como natural decorrência dessa insuprimível prerrogativa constitucional - que nenhuma conclusão desfavorável ou qualquer restrição de ordem jurídica à situação individual da pessoa que invoca essa cláusula de tutela pode ser extraída de sua válida e legítima opção pelo silêncio. Daí a grave - e corretíssima - advertência de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (\"Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro\", p. 396, 1993, Saraiva), para quem o direito de permanecer calado \"não pode importar desfavorecimento do imputado, até mesmo porque consistiria inominado absurdo entender-se que o exercício de um direito, expresso na Lei das Leis como fundamental do indivíduo, possa acarretar-lhe qualquer desvantagem\".

Esse mesmo entendimento é perfilhado por ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (\"Direito à Prova no Processo Penal\", p. 113, item n. 7, nota de rodapé n. 67, 1997, RT), que repele, por incompatíveis com o novo sistema constitucional, quaisquer disposições legais que autorizem inferir, do exercício do direito ao silêncio, inaceitáveis conseqüências prejudiciais à defesa e aos interesses do réu ou do indiciado, como a advertência a que alude o art. 186 do CPP.

No sistema jurídico brasileiro, não existe qualquer possibilidade de o Poder Público (uma Comissão Parlamentar de Inquérito, p. ex.), por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer, sem prévia decisão judicial condenatória irrecorrível, a culpa de alguém.

Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer comportamento estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção e nem responsabilidade criminal por mera suspeita (RT 690/390 - RT 698/452-454).

É por essa razão que \"Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído\" (RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Cabe ter presente, bem por isso, o próprio magistério jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que, ao dar sentido e conseqüência ao postulado da não-culpabilidade, deixou assentadas, nesse tema, diretrizes que se revestem de um inequívoco significado político-jurídico concernente à preservação do regime constitucional das liberdades públicas, em nosso ordenamento positivo.

Com efeito, esta Suprema Corte já se pronunciou sobre a questão do necessário respeito estatal aos direitos de qualquer pessoa contra quem é instaurado procedimento de caráter investigatório (cuide-se de investigação policial ou trate-se de inquérito parlamentar), firmando entendimento que não permite reconhecer, fora das hipóteses previstas na Constituição, a validade de medidas que possam gerar restrições jurídicas à esfera de autonomia individual do indiciado, ou, excepcionalmente, da própria testemunha.

Nesse sentido, cabe ter presente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na qual esta Corte deixou assentada diretriz da mais alta significação na exegese do princípio constitucional de que ninguém pode ser considerado culpado antes que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível:

\"Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5).\"

(RTJ 161/264-266, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

A natureza essencialmente democrática do regime político sob o qual vivemos confere sentido de permanente atualidade à lapidar decisão proferida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em acórdão da lavra do saudoso Des. VICENTE DE AZEVEDO, proclamou, sob a égide da Constituição de 1946, que, \"Por exclusão, suspeita ou presunção, ninguém pode ser condenado em nosso sistema jurídico-penal\" (RT 165/596), e nem privado ou afetado em seus direitos, quando estes encontram pleno fundamento no ordenamento positivo.

Não constitui demasia enfatizar, neste ponto, que o princípio constitucional da não-culpabilidade, além de incidir, precipuamente, no domínio da prova (impondo, ao órgão estatal, o ônus de provar a culpa daquele a quem se atribuiu a prática de um crime), também consagra, em nosso sistema jurídico, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado e ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.

Em suma: cabe ter presente, no exame da matéria ora em análise, a jurisprudência constitucional que tem prevalecido, sem maiores disceptações, no âmbito do Supremo Tribunal Federal:

\"O privilégio contra a auto-incriminação - que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito - traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa que deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

- O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes.

- Ninguém pode ser tratado como culpado, independentemente da natureza do ilícito penal que lhe possa ser atribuído, sem que exista decisão judicial condenatória transitada em julgado.

O princípio constitucional da não-culpabilidade consagra, em nosso sistema jurídico, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.\"

(HC 79.812-SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

No que concerne à condução coercitiva da ora paciente, devo observar que, em situações assemelhadas à dos presentes autos, o Supremo Tribunal Federal concedeu medida liminar para obstar a efetivação dessa providência excepcional, quando decretada pela própria Comissão Parlamentar de Inquérito, sem observância da formalidade exigida pelo art. 218 do CPP, c/c o art. 3º, parágrafo único, da Lei nº 1.579/52, notadamente quando a pessoa convocada para depor residir em local diverso daquele em que deverá ocorrer a sua inquirição, hipótese a que se aplicará o art. 222 do CPP, por efeito de expressa determinação constante do art. 6º da já referida Lei nº 1.579/52:

\"O Paciente pretende ser ouvido em Campinas/SP (...).

O pedido encontra amparo legal (CPP, art. 222).

As Comissões Parlamentares de Inquérito têm \'poderes de investigação próprios das autoridades judiciais\' (CF, art. 58, § 3º).

Tais poderes exercer-se-ão nos moldes dos procedimentos a que se submetem os juízes.

É garantia constitucional (CF, art. 5º, LIV).

Concedo liminar.

O Paciente poderá deixar de atender à intimação, nos termos em que foi posta.

Não estará sujeito a medidas coercitivas.

Comunique-se ao Senhor Presidente da CPI.\"

(HC 80.152-SP, Rel. Min. NELSON JOBIM)

Essa percepção do tema encontra apoio no magistério da doutrina (ODACIR KLEIN, \"Comissões Parlamentares de Inquérito - A Sociedade e o Cidadão\", p. 55/56, item n. 5, 1999, Fabris Editor; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, \"Comissões Parlamentares de Inquérito\", p. 69/70, 1999, Ícone Editora), razão pela qual entendo prudente também conceder, no ponto, medida liminar em favor da ora paciente, para que não sofra qualquer condução coercitiva determinada pela própria CPI/Amazônia, até que esta Suprema Corte, ao julgar a presente ação de habeas corpus, pronuncie-se sobre o tema ora em análise.

Cabe enfatizar, por necessário, que a condução coercitiva de qualquer testemunha, para legitimar-se em face do ordenamento jurídico, supõe estejam presentes os pressupostos a que alude o art. 218 do CPP, de tal modo que, se não tiver ocorrido a intimação regular da testemunha, não se justificará a adoção da medida extraordinária em referência.

Também não se revelará lícito empregar o meio excepcional a que alude o art. 218 do CPP, se houver justa causa que autorize o não-comparecimento da testemunha, ainda que esta tenha sido regularmente intimada.

Daí a advertência de JULIO FABBRINI MIRABETE (\"Código de Processo Penal Interpretado\", p. 503, 7ª ed., 2000, Atlas):

\"Não se justifica a condução coercitiva se houver justa causa para o não-comparecimento (enfermidade, acidente etc.).\"

Observo que, no caso, a ora paciente ainda não foi pessoalmente intimada para comparecer perante a Comissão Parlamentar de Inquérito ora apontada como órgão coator, tanto que o Oficial de Justiça - incumbido de cientificá-la para a audiência pública designada, pela CPI, para o próximo dia 09 de novembro - certificou que deixou de fazê-lo, por não a haver encontrado, eis que, segundo informação obtida pelo meirinho, a Senhora Eugênia Silva de Freitas \"está viajando para a Cidade de Belém/PA, em tratamento de saúde\" (fls. 75).

Desse modo, e enquanto não se promover a intimação regular da ora paciente, esta não poderá ser conduzida coercitivamente.

Sendo assim, defiro o pedido de medida liminar, nos precisos termos expostos nesta decisão.

Comunique-se, com urgência, o teor deste ato decisório, ao Senhor Presidente da CPI/Amazônia, ao Senhor Superintendente Regional do DPF/Pará e ao Senhor Secretário da Segurança Pública do Estado do Pará, encaminhando-se-lhes cópia da presente decisão.

2. Não obstante a presente concessão da medida liminar, determino que a ora paciente, em cinco (5) dias, informe a CPI/Amazônia sobre o endereço onde poderá receber pessoal notificação, para efeito de prestar depoimento perante esse órgão de investigação parlamentar, comprovando, ainda, nestes autos, logo após a efetivação de tal medida, a execução do ato em questão.

A presente medida é determinada para impedir que a ora paciente - cuja prerrogativa conta a auto-incriminação já se acha assegurada por esta decisão - venha a subtrair-se, deliberada e ilegitimamente, ao cumprimento do dever jurídico-legal que lhe incumbe como testemunha.

Decorrido o prazo assinado à paciente, cuja intimação dar-se-á na pessoa de seu ilustre procurador constituído na presente causa, voltem-me imediatamente conclusos estes autos, para verificação do cumprimento da providência ora determinada.

3. Cumpra-se o despacho exarado a fls. 39.

Publique-se.

Brasília, 08 de novembro de 2000.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator



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