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EMENTA:
APELAÇÃO. EXTORSÃO. DIFERENÇA EM RELAÇÃO À CONCUSSÃO. GRAVE AMEAÇA
INJUSTA. FLAGRANTE PREPARADO. AUSÊNCIA DE ILÍCITO PENAL A AUTORIZAR A PRISÃO.
CONSUMAÇÃO. REINCIDÊNCIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO
I-
O delito de concussão diferencia-se da extorsão, principalmente, pelo modo de
execução, ou seja, neste último ilícito penal, o agente utiliza-se de violência,
física ou moral- grave ameaça, para obter o seu propósito, enquanto que na
concussão a exigência da indevida vantagem se faz utilizando-se,
exclusivamente, da autoridade do cargo que ocupa, sem que tenha que haver,
necessariamente, a violência física ou a promessa de mal injusto.
II-
Não há crime a autorizar a prisão em flagrante se este é preparado, ou seja,
há instigação, participação ou colaboração da autoridade na configuração
do delito, podendo-se afirmar que este decorre de iniciativa do policial e a
preparação torna impossível a consumação do crime.
III-
Sendo crime formal, a extorsão consuma-se com o constrangimento sofrido pela vítima,
sendo irrelevante se ela realiza ou não o fim visado pelo agente.
IV-
Não incide a agravante descrita no art. 61, inciso I do Código Penal, se não
há certidão cartorária nos autos comprovando a reincidência.
V-
Recurso provido para diminuir a pena do primeiro apelante.
Vistos,
relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal Nº 306.289-1 da
Comarca de CORONEL FABRICIANO, sendo Apelante (s): 1º) DÁRIO CORRÊA DA SILVA
e 2º) AMILTON DE OLIVEIRA CERQUEIRA e Apelado (a) (os) (as): A JUSTIÇA PÚBLICA,
ACORDA,
em Turma, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de Minas
Gerais, DAR PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DO PRIMEIRO APELANTE E NEGAR
PROVIMENTO AO RECURSO DO SEGUNDO APELANTE.
Presidiu
o julgamento o Juiz CARLOS ABUD (Revisor) e dele participaram os Juízes
ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (Relator) e MYRIAM SABOYA (Vogal).
O
voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais
componentes da Turma Julgadora.
Produziu
sustentação oral, pelo primeiro apelante, o Dr. Wyllerson Balmant de Paula.
Belo
Horizonte, 22 de agosto de 2000.
Juiz
Alexandre Victor de Carvalho
Relator
O
Sr. Juiz Alexandre Victor de Carvalho:
Estive
atento à sustentação oral proferida da tribuna pelo Dr. Wyllerson Balmant de
Paula.
Registro,
antes de proferir meu voto, que recebi, um pouco antes desta sessão de
julgamento, uma petição do Dr. Wyllerson Balmant de Paula, em nome do seu
constituinte, Sr. Dário Corrêa da Silva, dando conta de um auto de prisão em
flagrante em que foi autuado em flagrante o cidadão Valdeci Caires Pizza nas
sanções dos art. 12 da Lei nº 6.368/76, e 289, § 1º, do Código Penal.
Estou determinando a juntada aos autos dessa petição.
RELATÓRIO
Trata-se
de apelação interposta por Dário Corrêa da Silva e Amilton de Oliveira
Cerqueira visando à reforma da sentença condenatória pela prática do crime
descrito no artigo 158, § 1º, c/c art. 61, inciso II, alínea "g" e 62,
inciso I, este último somente em relação ao primeiro apelante, todos do Código
Penal, cuja pena total foi de seis anos, dois meses de reclusão e vinte e
quatro dias-multa, arbitrados unitariamente no patamar de 1/30
do salário mínimo vigente ao tempo do fato, para o primeiro apelante e
cinco anos, nove meses e dez dias de reclusão e dezenove dias-multa para o
segundo apelante.
Segundo
narram os autos, os apelantes, detetives da Polícia Civil, juntamente com o
co-réu Valdeci Caires Pizza, simularam um flagrante de compra de substância
entorpecente em desfavor do também co-réu Ary Carneiro Filho, objetivando
extorqui-lo com o intuito de obter
a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
A
empreitada criminosa não logrou êxito, porquanto o co-réu Ary Carneiro Filho
relatou os fatos á polícia e toda a trama foi esclarecida, sendo que os
apelantes quase foram presos na ocasião em que se dirigiram para o acerto final
com a referida vítima da extorsão, fugindo numa viatura com placa fria.
O
Parquet denunciou os apelantes pelo delito de extorsão em concurso material com
quadrilha e tráfico ilícito de entorpecentes. Defesa prévia dos apelantes,
arrolando testemunhas, às f. 80-82,TA e 151-154,TA, respectivamente. Alegações
Finais do Ministério Público requerendo a procedência da denúncia às f.
371-380,TA. Os apelantes apresentaram suas Alegações defensivas às f.
384-388,TA e 418-421,TA.
A
sentença guerreada, julgando consistente o conjunto probatório, condenou os
apelantes apenas em relação ao delito de extorsão, absolvendo-os quanto aos
crimes de quadrilha e tráfico de drogas, baseando sua decisão na palavra da vítima
e nas demais provas testemunhais e documentais produzidas.
Inconformados,
apelam os réus apresentando suas razões às f. 410-419,TA e 423-426,TA,
pugnando pela reforma da sentença para que sejam absolvidos ou,
alternativamente, que haja a diminuição da pena por ter sido o delito tentado
e não-consumado.
Devidamente
intimado, o Parquet apresentou contra-razões às f. 427-436,TA, onde requer a
manutenção do decisum por seus próprios fundamentos.
A
Procuradoria de Justiça, através do parecer da lavra do ilustre Procurador Dr.
Carlos Weber Veado, opina para que seja negado provimento ao recurso.
É
o relatório.
II-
CONHECIMENTO
Conheço
do recurso por preencher os pressupostos legais.
III-
MÉRITO - FUNDAMENTAÇÃO
Antes
de passar à análise dos argumentos expendidos pela defesa em suas razões de
apelo, importante se faz a distinção entre o delito de extorsão, imputado aos
apelantes e de concussão, crime contra a administração pública previsto no
art. 316 do Código Penal.
Entendo
como a grande maioria dos doutrinadores, excetuado Paulo José da Costa Júnior
- Curso de Direito Penal, ed. Saraiva - que o crime de concussão não é uma
norma penal especial em relação à extorsão, ou seja, diferenciando-se em
relação a este último delito unicamente em virtude do sujeito ativo que
somente pode ser o funcionário público.
O
delito de concussão diferencia-se da extorsão, principalmente, pelo modo de
execução, ou seja, neste último ilícito penal, o agente utiliza-se de violência,
física ou moral - grave ameaça, para obter o seu propósito, enquanto que na
concussão a exigência da indevida vantagem se faz utilizando-se,
exclusivamente, da autoridade do cargo que ocupa, sem que tenha que haver,
necessariamente, a violência física ou a promessa de mal injusto.A vítima, na
concussão, cede aos ensejos do agente em virtude do metus auctoritatis causa.
Aqui, neste delito, é a condição de funcionário público que impõe temor e
não a violência ou a grave ameaça.
Raciocinar
de outro modo, ou seja, de que a única diferença entre estes dois delitos está
no sujeito ativo seria aceitar que o funcionário público não pode praticar o
crime de extorsão, resultando numa norma autenticamente protecionista desta
classe profissional em detrimento da Administração Pública que deveria
receber uma maior tutela, porquanto a pena do crime de concussão é
sensivelmente menor do que aquela prevista para o delito de extorsão.
Portanto,
o funcionário público pode sim praticar o crime de extorsão, ainda que no
exercício e em razão de sua função, desde que, inevitavelmente, realize o
constrangimento da vítima mediante violência física ou grave ameaça e
objetivando o recebimento de indevida vantagem econômica.
Neste
sentido, o elucidativo acórdão proferido no egrégio Tribunal de Alçada
Criminal do Estado de São Paulo:
"É
inegável que o crime de extorsão previsto no art. 158 do CP e o de concussão,
capitulado no art. 316 do mesmo diploma legal guardam acentuada afinidade.
Traduzem ambos a exigência de uma vantagem indevida, por parte do agente,
acrescida porém a figura típica da concussão de um plus representado pela
qualidade do funcionário público do agente que, nessa qualidade reclama para
si, em razão de sua função e servindo-se dela, a vantagem ilegítima. Mas não
é essa a única nota distintiva. Ocorre outra. Na concussão, o
agente exige a vantagem (e exigir é impor como obrigação, reclamar
imperiosamente), mas não constrange com violência ou grave ameaça. O funcionário
impõe à vítima a prestação da vantagem indevida e esta cede-lhe às exigências,
exclusivamente metus auctoritatis causa. Não premido por promessas de violência
ou de algum mal futuro. Já, na extorsão, bem ao contrário, o agente
constrange alguém, mediante violência ou grave ameaça, a fazer, tolerar que
se faça ou deixar de fazer alguma coisa, obtendo, por esse meio, também, uma
indevida vantagem econômica. Vê-se, por aí, que, sem violência, não há
extorsão e com o emprego dela ou promessa de grave ameaça, o crime a
integralizar-se haverá de ser o do art. 158, ainda que seja o agente funcionário
público e que proceda no exercício ou em razão de suas funções" (TACRIM
- SP - Rev. - Rel. Canguçu de Almeida - RT 586/309).
In
casu, a extorsão restou caracterizada porque os apelantes, detetives da polícia
civil e, via de conseqüência, funcionários públicos, ameaçaram a vítima e
também co-réu Ary Carneiro Filho
de prendê-lo, se não pagasse a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Ora,
claramente, estamos diante de uma grave ameaça a autorizar a tipificação da
conduta na norma descrita no art. 158 do diploma penal.
Note-se
que não foi a qualidade da função exercida pelos apelantes que determinou o
constrangimento da supracitada vítima e, sim, a promessa do cárcere.
Quanto
à exigência apontada pela melhor doutrina de ser o mal prenunciado, além de
idôneo, injusto, entendo também que a conduta dos apelantes narrada nos autos
preenche tal requisito, pois não havia motivos para prisão do co-réu Ary
Carneiro Filho tendo em vista que este não praticava nenhum ilícito penal,
porquanto a hipótese era, cristalina, de um flagrante preparado.
O
flagrante preparado ocorre quando há instigação, participação ou colaboração
da autoridade na configuração do delito, podendo-se afirmar que este decorre
de iniciativa do policial. No caso em tela, os apelantes entraram em contato com
o co-réu Valdeci Caires Pizza, persuadiram-no a participar da empreitada
criminosa, fazendo-o entrar em contato com o traficante e também réu nestes
autos, Eberval Silva Ponciano, que por sua vez vendeu a droga a Valdeci, tendo
esta sido, inclusive, paga e recebida pelo primeiro apelante que também
compareceu no dia marcado para a entrega da droga ao co-réu Ary Carneiro Filho.
Assim,
não há dúvidas de que houve uma preparação do flagrante, impedindo a prática
delituosa, não tendo o bem jurídico protegido pela norma penal, em nenhum
momento, ficado em perigo, pois não havia condições para ocorrer a consumação
do delito.
Não
há que se falar, portanto, em ilícito penal praticado pelo co-réu Ary
Carneiro Filho, incidindo, na espécie, a súmula 145 do Supremo Tribunal
Federal:
Súmula
145: "Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna
impossível a sua consumação."
Conclui-se
que a ameaça feita pelos apelantes em prender o co-réu Ary Carneiro Filho era
injusta, coadunando-se, assim, com o tipo penal da extorsão. Acrescente-se,
ainda, o fato de que a vítima afirma que também recebeu ameaça de morte,
realizando-se, igualmente por esta via, a tipicidade da conduta dos apelantes no
delito de extorsão.
Feitas
estas necessárias considerações, o recurso interposto pelos réus não deve
prosperar porque a sentença monocrática analisou com precisão a prova dos
autos e a matéria de direito.
Quanto
à questionada autoria do delito descrito na exordial, entendo que restou bem
caracterizada no conjunto probatório, porquanto os depoimentos dos co-réus Ary
Carneiro Filho e Valdeci Caires Pizza, como supramencionado, são contundentes
em apontar os apelantes como autores da extorsão narrada na denúncia, estando
suas declarações harmônicas e também em conformidade com as demais provas
dos autos.
O
testemunho do Sr. Antônio Pizza é incisivo ao afirmar o relacionamento
estreito existente entre o primeiro apelante e seu filho Valdeci Pizza, chegando
mesmo a mencionar que pedia insistentemente ao seu filho para não andar com o
policial Dário.
Ainda
analisando a prova testemunhal produzida, o Delegado Inácio Luiz Gomes de
Barros, à f. 184,TA, afirma que a Corregedoria de Polícia apurou os ilícitos
mencionados na denúncia e pediu a exclusão dos apelantes dos quadros da Polícia
civil. À f. 185, o também Delegado Renato Trade confirma que os acusados,
quando abordados pela polícia, tentaram fugir.
Completando
o coeso conjunto probatório em desfavor dos apelantes estão o auto de
reconhecimento de f. 11,TA, bem como o auto de apreensão do talonário de
cheque da vítima Ary Carneiro Filho de f. 24, além da comunicação dos
detetives que realizaram o trabalho de investigação, à f. 14,TA, confirmando
que os apelantes se encontravam no local e na hora marcada segundo depoimento do
co-réu Ary para recebimento da indevida vantagem.
Diante
das declarações dos co-réus e dos demais elementos probatórios citados, não
existem dúvidas de que os apelantes realizaram a conduta descrita na exordial,
praticando o crime de extorsão.
No
que pertine à consumação do delito de extorsão, embora a matéria tenha sido
polêmica, hoje já está praticamente pacífico na doutrina e jurisprudência,
sendo inclusive objeto de súmula do Superior Tribunal de Justiça que "o
crime de extorsão consuma-se independentemente da obtenção da vantagem
indevida" - Súmula 96 do STJ.
Tratando-se
de crime formal, consuma-se, portanto, a extorsão com o constrangimento sofrido
pela vítima, sendo irrelevante se ela realiza ou não o fim visado pelo agente.
Este
delito de extorsão é dos chamados crimes de tendência interna transcendente,
em que a vontade exigida dentro do tipo ultrapassa a parte objetiva que o tipo
impõe.
Então,
o crime se consuma com o constrangimento da vítima, ou seja, o ato dos agentes
constrangerem a vítima e esta sentir-se intimidada com aquele constrangimento sério
e grave, não havendo nenhuma necessidade da obtenção da indevida vantagem
pelo agente. Se ele a obtiver, estamos diante do chamado crime exaurido, que é
muito diferente do crime consumado.
Na
hipótese dos autos, a vítima foi constrangida tanto é que preencheu e
entregou um cheque no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), além do recibo do
seu carro, não havendo que se falar em delito tentado.
A
agravante descrita no art. 61, inciso II, alínea "g", do CP, ou seja, crime
cometido com abuso de poder ou com violação de dever inerente ao cargo, ofício,
ministério ou profissão encontra-se bem delineada nos autos, porquanto os
apelantes eram policiais civis e usaram desta autoridade para a prática do
crime, desvirtuando-se dos ditames da profissão de detetive quando na verdade
deveriam combater o crime e não contribuir para sua ocorrência.
A
pena foi corretamente dosada, fazendo-se apenas uma correção em relação ao
apelante Dário Corrêa Silva, pois não há reincidência comprovada nos autos,
conforme reconhece a própria sentença, decotando-se, portanto, o aumento de
quatro meses e quatro dias-multa referente à agravante descrita no art. 61,
inciso I do diploma penal, passando a pena a ser de 5 (cinco) anos, 9 (nove)
meses e 10 (dez) dias de reclusão e 19 (dezenove) dias-multa, definitiva em razão
da inexistência de outras circunstâncias modificadoras.
IV-
CONCLUSÃO
Com
estas considerações, DOU PROVIMENTO PARCIAL ao recurso do primeiro apelante,
para diminuir a pena aplicada para 5 (cinco) anos, 9 (nove) meses e 10 (dez)
dias de reclusão e 19 (dezenove) dias-multa e NEGAR PROVIMENTO ao recurso do
segundo apelante, mantendo-se, no demais, a sentença hostilizada.
Custas
ex lege.
É
como voto.
Juiz
Alexandre Victor de Carvalho
afc