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Decisões: Furto. Prestação de serviço. Suspensão condicional do processo. Ilegalidade. Falta de previsão na lei nº 9.099/95. Anulação da revogação. Reformatio in mellius. Inteligência do art. 617 do CPP. Juiz Alexandre victor de Carvalho

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

EMENTA: APELAÇÃO - FURTO SIMPLES - PRESTAÇÃO DE SERVIÇO COMO CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO - ILEGALIDADE - FALTA DE PREVISÃO NA LEI Nº 9.099/95 - ANULAÇÃO DA REVOGAÇÃO - REFORMATIO IN MELLIUS - POSSIBILIDADE - INTELIGÊNCIA DO ART. 617 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

I- As sanções previstas no diploma penal não podem figurar como condições do sursis processual, por falta de previsão legal e pela própria natureza do instituto.

II- A ausência de recurso por parte da defesa não impede o reconhecimento de nulidade absoluta, pois a reformatio in melius é admitida no Direito brasileiro, principalmente se o réu não recorreu, em atenção ao princípio favor rei.

III- Anulado o processo, de ofício.  

 

ACÓRDÃO 

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal Nº 305.458-2 da Comarca de NOVA RESENDE, sendo Apelante (s): A JUSTIÇA PÚBLICA e Apelado (a) (os) (as): DANIEL FRANCISCO DA SILVA,

ACORDA, em Turma, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, DE OFÍCIO, ANULAR O PROCESSO A PARTIR DE FOLHA 53,TA. 

Presidiu o julgamento o Juiz CARLOS ABUD (Revisor) e dele participaram os Juízes ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (Relator) e MYRIAM SABOYA (Vogal). 

O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais componentes da Turma Julgadora. 

Belo Horizonte, 29 de agosto de 2000. 

Juiz Alexandre Victor de Carvalho

Relator 

 


VOTO

 

 

 

O SR. JUIZ ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO:

 

I- RELATÓRIO 

Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público oficiante na Comarca de Nova Resende visando à reforma da sentença que condenou o apelado a uma pena de 1 (um) ano e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa pela prática do crime descrito no artigo 155, caput,  do Código Penal, pena esta substituída pela prestação pecuniária consistente no pagamento de um salário mínimo à vítima.

Segundo narram os autos, o apelado, após adentrar as dependências da Escola Municipal Doutor Melo Viana, teria subtraído de lá um aparelho de videocassete quatro cabeças, juntamente com o respectivo controle remoto e um aparelho de antena parabólica.

O Parquet denunciou o apelado pelo delito de furto simples, oferecendo, na exordial, o benefício da suspensão condicional do processo que foi aceita pelo acusado e homologada judicialmente, conforme termo de f. 36-37,TA.

O \"sursis\" processual foi revogado à f. 53, porquanto teria o apelado descumprido uma das condições sursitárias, ou seja, a prestação de serviços à comunidade, voltando o processo ao seu transcurso normal. Defesa prévia, arrolando testemunhas, à f. 61,TA. Alegações finais do Ministério Público requerendo a procedência da denúncia às f. 70-77,TA. O apelado apresentou suas alegações defensivas às f. 79-81,TA.

A sentença guerreada, julgando consistente o conjunto probatório, condenou o apelado, baseando sua decisão nas provas testemunhais e documentais carreadas aos autos.

Inconformado, apela o Ministério Público pugnando, exclusivamente, pela modificação na sanção aplicada, requerendo a substituição da pena privativa de liberdade pela prestação de serviços à comunidade.

Devidamente intimado, o apelado apresentou contra-razões às f. 95-97,TA, onde requer a manutenção do decisum por seus próprios fundamentos.

A Procuradoria de Justiça, através do parecer da lavra da ilustre Procuradora Dra. Regina Belgo, opina para que seja negado provimento ao recurso. 

É o relatório.

 

II- CONHECIMENTO

Conheço do recurso por preencher os pressupostos legais.

 

III- PRELIMINAR - FUNDAMENTAÇÃO

Antes de analisar o mérito do presente recurso, entendo que existe preliminar de ofício a ser reconhecida, consistente em vício na prestação jurisdicional que viola princípios constitucionais e a legislação ordinária.

Com efeito, verifico que o magistrado monocrático, em atendimento ao requerido pelo Ministério Público, revogou a suspensão condicional do presente processo ao argumento de que o apelado não estava cumprindo uma das condições impostas, ou seja, a prestação de serviços à comunidade, consistente na realização de tarefas no Asilo Municipal São Vicente de Paula, durante oito horas semanais no prazo de seis meses.

Conforme informações da entidade beneficiada, o apelado teria trabalhado durante quatro meses, mas sem se dedicar às suas funções, chegando tarde e saindo sempre mais cedo.

Esta revogação é francamente ilegal, porque seu alicerce fundamental viola a Lei nº 9.099/95 e a Constituição Federal, porquanto impôs-se como condição da suspensão condicional do processo uma verdadeira sanção penal de natureza substitutiva, ou seja, a prestação de serviços à comunidade, sem que houvesse previsão legal para tanto.

É certo que na suspensão condicional da pena, prevista no art. 77 do Código Penal, o legislador de 1984 criou a possibilidade de que a prestação de serviços à comunidade ou mesmo a limitação de fim de semana figurassem como condições sursitárias no primeiro ano do período de prova.

Este procedimento já bastante criticado pela moderna doutrina penal, conforme noticia Luís Flávio Gomes- Suspensão Condicional do Processo Penal, ed. RT, p. 335 - mereceu a seguinte justificativa na Exposição de Motivos da Lei nº 7.209/84 que reformou a Parte Geral do Código Penal:

\"Tais condições transformaram a suspensão condicional em solução mais severa do que as pena restritivas de direitos, criando-se para o juiz mais esta alternativa à pena privativa de liberdade não superior a 2 (dois) anos. Os condenados ficam sujeitos a regime de prova mais exigente, pois além das condições até agora impostas deverão cumprir, ainda, as de prestação de serviços à comunidade ou de limitação de fim de semana, bem como as condições outras, especificadas na sentença,\" adequadas ao fato e à situação pessoal do condenado\"

Neste diapasão, fica claro que o Codex consagrou no citado art. 77 apenas a suspensão da execução da pena privativa de liberdade porque possibilitou a fixação de uma pena restritiva de direitos como condição sursitária, na evidente finalidade de tornar a suspensão condicional da pena em medida punitiva mais severa que as penas substitutivas.

Note-se que nem mesmo existe possibilidade da distinção proposta por Luís Flávio Gomes, na citada hipótese, entre pena substitutiva e condição do \" sursis\" , ou seja, de que \"o descumprimento de uma pena substitutiva pode provocar a sua conversão em prisão, enquanto o descumprimento de uma condição não pode ter a mesma conseqüência\".

Ora, o não-cumprimento da condição sursitária leva à revogação da suspensão condicional da pena e, via de conseqüência, à execução da sanção corporal, da mesma forma que o descumprimento da pena substitutiva determina a sua conversão em pena privativa de liberdade. Conclui-se que modifica-se a terminologia, mas mantém-se idênticos os efeitos.

Assim, a condição prevista no § 1º do art. 78 do diploma penal possui a qualidade de pena substitutiva, tal se reconhecendo, em função de o aludido texto legislativo  referir-se, expressamente, ao dispositivo legal que prevê a prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana como penas substitutivas.

Diante destas necessárias considerações, não compartilhamos do raciocínio jurídico do Prof. Luis Flávio Gomes de que a prestação de serviços à comunidade poderia figurar como condição da suspensão condicional do processo a ser fixada discricionariamente, conforme dispõe o § 2º do art. 89 da Lei nº 9.099/95.

Segundo alega o eminente jurista na supramencionada obra, a prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana como condições do \"sursis\" processual se diferenciariam das penas substitutivas porque \"se descumpridas, não provocariam a conseqüência da prisão, senão a revogação da suspensão e o reinício do processo\", além do que \"nada impede que uma restrição tenha várias naturezas jurídicas distintas, conforme cada caso.\"

Parece-nos equivocado o pensamento do ilustre doutrinador. De acordo com a exegese do § 1º do art. 78 acima exposta, só se justifica a prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana como condições do sursis se forem concebidas enquanto acréscimos na severidade  da suspensão condicional da pena e com o nítido propósito de transformar este instituto numa opção exclusivamente subsidiária para o acusado frente às chamadas penas punitivas, solução mais benigna ao réu.

É evidente que a mens legis do § 1º do art. 78 não se aplica à suspensão condicional do processo, porque a essência deste instituto é justamente ser uma medida mais benéfica ao acusado do que a aplicação de uma pena restritiva de direitos.

Ademais, não existe, no dispositivo que consagrou a suspensão condicional do processo, previsão para que se adote a prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana como condições sursitárias, como acontece na suspensão condicional da pena.  Assim, possibilitar que o magistrado escolha, a seu bel prazer, uma das penas previstas no nosso ordenamento jurídico e rotulá-la como condição do sursis processual, justificando-a enquanto tal apenas porque se descumprida não gera prisão e, sem processo, é atentar contra o princípio constitucional da legalidade.

A suspensão condicional do processo implica, invariavelmente, em obrigações ou restrições. Quando um acusado aceita o benefício do art. 89, aceita também o cumprimento de determinadas condições restritivas de liberdade, ainda que sem admissão de culpa.

Entretanto, a discricionariedade que reina nesta espécie de transação penal e na imposição destas condições ao acusado não pode violar o princípio da legalidade, no sentido de que determinadas obrigações ou restrições previstas no nosso Código Penal também como sanções penais sejam aplicadas sem critério, dependendo somente do juízo de valoração e necessidade do magistrado. 

Veja bem: aceitar o raciocínio do Prof. Luís Flávio Gomes de que uma determinada restrição qualificada enquanto pena pode figurar também como condição é admitir que se possa aplicar, como condição sursitária na suspensão condicional do processo, o pagamento de multa, a perda de bens e valores, a interdição temporária de direitos e, pasmem, até mesmo a pena privativa de liberdade!!!

Não há dúvidas que seria um impropério desmedido e aqui só é levada em consideração para efeitos de argumentação, mas, teoricamente, seria possível caso a dicção do § 2º do art. 89 pudesse ser interpretada nas dimensões propostas pelo ilustre Professor.

A imposição de uma pena substitutiva como condição do sursis processual terá o mesmo efeito almejado pela Reforma do Código Penal de 1984, demonstrada na já citada exposição de motivos: tornar este instituto que visa beneficiar o acusado evitando um processo, mais severo que uma condenação, porquanto, diante da Lei nº 9.714/98, provavelmente o acusado receberia, como na hipótese dos autos, justamente, uma pena restritiva de direitos.

Se a suspensão condicional do processo é considerada por muitos como uma \"negociação jurídica\", pode-se dizer, sem medo de errar, que apenas um acusado mal orientado faria este péssimo negócio, ou seja, aceitar a mesma pena que lhe seria aplicada caso fosse condenado, antecipadamente e sem chance de defesa!

E o resultado seria a falência deste importante instituto despenalizador - grifei.

Noutro giro, observe que o Código Penal, em sua parte geral, ao dispor sobre a suspensão condicional da pena, possui dispositivo com idêntica semelhança ao citado § 2º do art. 89 da Lei nº 9.099/95 - art. 79- entretanto, faz expressa referência, em regra à parte - art. 78, § 1º, à prestação de serviços à comunidade e à limitação de fim de semana como condições do sursis.

Significa dizer que, interpretando sistematicamente o capítulo IV do Título V do Codex, conclui-se que a norma do art. 79, idêntica, por seu turno, ao art. 89, § 2º, da Lei nº 9.099/95, não engloba a prestação de serviços à comunidade e a limitação de fim de semana.

Isto posto, considero que as sanções previstas no diploma penal não podem figurar como condições do sursis processual, por falta de previsão legal e pela própria natureza do instituto.

Ressalte-se que a ausência de recurso por parte da defesa não impede o reconhecimento desta ilegalidade, já que há ofensa, inclusive, a norma constitucional - princípio da legalidade, art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. Ademais, a reformatio in melius é admitida no Direito brasileiro, principalmente se o réu não recorreu, em atenção ao princípio favor rei.

A jurisprudência está em conformidade com o exposto:

\"O recurso de apelação do MP devolve ao tribunal o exame de mérito e da prova. Nessas circunstâncias, se o tribunal verifica que houve erro na condenação ou na dosimetria da pena, não está impedido de corrigi-lo em favor do réu, ante o que dispõe o art. 617 do CPP, que somente veda a reformatio in pejus, e não a reformatio in mellius. Argumentos de lógica formal não devem ser utilizados na Justiça criminal para homologar erros ou excessos\" (STJ - Resp. - Rel. Assis Toledo - RT 659/335).

 

III- CONCLUSÃO

Com estas considerações, reconhecendo a ilegalidade da prestação de serviços como condição da suspensão condicional do presente processo, realizada às f. 36-37,TA e, via de conseqüência, da sua revogação à f. 53,TA, ANULO O PROCESSO desde aquele ato processual, ou seja, a partir de f. 53,TA, devendo o acusado cumprir o restante do período de prova, ou seja, o período fixado de dois anos, descontados os prazos até a decisão judicial anulada, observadas, ainda, as condições ajustadas, excetuada a prestação de serviços à comunidade.

Deixo de analisar o recurso ministerial, por estar prejudicado com a preliminar levantada de ofício.

É como voto.

Custas ex lege.

Juiz Alexandre Victor De Carvalho

 



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