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Decisões: Punição disciplinar. Habeas corpus. Meio inidôneo. Trancamento de inquérito policial. Impossibilidade.

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

TACRIM 11

STF - HABEAS CORPUS N. 80.800-0 - medida liminar (DJU 15.08.01, SEÇÃO 1, P. 19)

PROCED. : MINAS GERAIS

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACTE. : F.A.B.

IMPTE. : D.R.B.

ADV. : ORLANDO ARAGÃO NETO

COATOR : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA


EMENTA

PUNIÇÃO DISCIPLINAR IMPOSTA A MAGISTRADO FEDERAL. PENA DE CENSURA. NÃO-CABIMENTO, EM TAL HIPÓTESE, DA AÇÃO DE HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO DO WRIT QUE TAMBÉM OBJETIVA O TRANCAMENTO DE INVESTIGAÇÃO PENAL. INQUÉRITO DESTINADO A APURAR FATO QUE SE REVESTE, EM TESE, DE TIPICIDADE PENAL. LEGITIMIDADE DESSA INVESTIGAÇÃO. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA. LIMINAR INDEFERIDA.

- A ação penal de "habeas corpus" não se revela cabível, quando promovida com o objetivo de invalidar decisão administrativa que impôs, a magistrado, a pena de censura. É que a função clássica desse writ constitucional - desde a cessação, em 1926, da doutrina brasileira do habeas corpus - restringe-se à tutela exclusiva da liberdade de locomoção física das pessoas. Precedentes.
- Havendo suspeita de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, torna-se legítima a instauração de inquérito policial, eis que se impõe, ao Poder Público, a adoção de providências necessárias ao integral esclarecimento da verdade real, notadamente nos casos de delitos perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada. Precedentes.

DECISÃO: Insurge-se, a impetrante, na presente ação de habeas corpus, contra punição disciplinar imposta ao ora paciente, que é magistrado federal (pena de censura, aplicada nos termos do art. 42, II, c/c o art. 44, ambos da LOMAN), postulando, ainda, o trancamento do inquérito policial instaurado contra esse mesmo Juiz federal, por suposta prática do crime de abuso de autoridade.

O acórdão, objeto da presente impetração, proferido pelo E. Superior Tribunal de Justiça, está assim ementado (fls. 253):

"PROCESSUAL PENAL. PROCEDIMENTO DISCIPLINAR. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO SINDICADO PARA A CONTINUIDADE DO JULGAMENTO. INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO. BIS IN IDEM.

1. Devidamente intimado para a sessão de julgamento da sindicância, na qual foi lido o relatório e realizada a sua defesa oral, não há falar-se em nulidade por falta da intimação do sindicado para a continuidade do julgamento, efetivada assim que o Juiz que pediu vista apresentou o seu voto.

2. A punição disciplinar não impede a verificação de possível ilícito na esfera criminal, tendo em vista o princípio da independência entre as instâncias administrativa e penal.

3. Habeas Corpus conhecido. Pedido indeferido." (grifei)

Cabe examinar, preliminarmente, se se revela suscetível de conhecimento o remédio de habeas corpus, quando impetrado, como no caso, contra sanção de caráter meramente disciplinar.

Como se sabe, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem advertido - tratando-se de hipótese em que não há risco efetivo de constrição à liberdade de locomoção física do paciente - que, em tal específica situação, não tem pertinência o writ constitucional do habeas corpus. É que a utilização do remédio heróico supõe, necessariamente, a concreta configuração de ofensa, atual ou potencial, ao direito de ir, vir e permanecer da pessoa (RTJ 135/593, Rel. Min. SYDNEY SANCHES - RTJ 136/1226, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 142/896, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI - RTJ 152/140, Rel. Min. CELSO DE MELLO - HC 80.199-MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que, com a Reforma Constitucional de 1926 - que importou na cessação da doutrina brasileira do habeas corpus - este writ passou a amparar, "única e diretamente, a liberdade de locomoção. Ele se destina à estreita tutela da imediata liberdade física de ir e vir dos indivíduos..." (RF 213/390 - RF 222/336 - RF 230/280 - RT 338/99 - RT 423/327 - HC 69.854-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Na realidade, a ação penal de habeas corpus não se revela cabível, ainda que para discutir eventual nulidade do processo penal, desde que não resulte configurada qualquer situação de dano efetivo ou de risco potencial ao jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque (RTJ 66/396).

Com maior razão, evidencia-se o descabimento desse writ constitucional, quando se tratar de punição de caráter simplesmente disciplinar, como ocorre na espécie destes autos, não se justificando, por isso mesmo, a pretendida restauração de eficácia da medida liminar concedida, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, pelo ilustre Relator do HC 13.791-MG (fls. 03).

Impõe-se destacar que o remédio jurídico-processual do habeas corpus, na tradição de nosso direito republicano, sempre encontrou assento nas diversas Constituições promulgadas a partir de 1891.

Trata-se de instrumento constitucional, de essencialidade inquestionável, destinado a ativar a tutela jurisdicional do Estado e a resguardar, de modo eficaz, a imediata liberdade de locomoção física das pessoas naturais, preservando-lhes o exercício do direito de ir, de vir e de permanecer.

Com o advento da ordem constitucional republicana em 1891, institucionalizou-se, em nosso sistema jurídico, já agora num plano de maior hierarquia normativa, a ação de habeas corpus, prevista, até então, apenas no âmbito da legislação imperial ordinária ou comum (Código de Processo Criminal do Império de 1832, art. 340, e Lei Imperial nº 2.033, de 1871, art. 18).

Sabemos todos que o sentido abrangente da norma inscrita no art. 72, § 22, da Constituição republicana de 1891, na redação anterior à estabelecida pela Revisão Constitucional de 1926, elasteceu, sob o influxo da doutrina brasileira do habeas corpus, a área de atuação processual desse instrumento formal de proteção às liberdades públicas.

A doutrina brasileira do habeas corpus - como enfatiza, em preciso magistério, ROBERTO ROSAS ("Direito Processual Constitucional", p. 85/86, 1983, RT) - ampliou o campo de incidência desse remédio constitucional, permitindo que, por meio dele, se defendessem outros direitos cujo gozo tivesse por suporte o exercício da liberdade de locomoção física.

O habeas corpus, então, sob a decisiva influência das idéias sustentadas pelo notável magistrado desta Corte, PEDRO LESSA ("Do Poder Judiciário", p. 337/339, 1915, Livraria Francisco Alves), passou a tutelar, no plano jurisdicional, não só o direito de ir, vir e permanecer, ainda quando este, na simples condição de direito-meio, pudesse vir a ser afetado de modo reflexo, indireto ou oblíquo (RF 22/306 - RF 34/505 - RF 36/192 - RF 38/213 - RF 45/183), mas, também, quaisquer outras liberdades ou prerrogativas jurídicas afetadas por comportamentos ilegais ou abusivos dos órgãos ou agentes da administração pública (RF 13/148).

Na realidade, a ampliação das funções jurídicas do habeas corpus deveu-se à inexistência, em nosso ordenamento positivo, de um remédio processual, que, à semelhança da ação de mandado de segurança - que só viria a ser institucionalizada pela Constituição de 1934 -, atuasse como instrumento viabilizador da tutela pronta, imediata e eficaz de outros direitos e liberdades expostos à ação eventualmente arbitrária do Poder Público (CASTRO NUNES, "Do Mandado de Segurança e de outros meios de defesa contra atos do Poder Público", p. 1/2, item n. 1, 8ª ed., 1980, Forense; SEABRA FAGUNDES, "O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário", p. 258, item n. 105, nota n. 19, 4ª ed., 1967, Forense).

O fato irrecusável é que, após a Reforma Constitucional de 1926, "A proteção do habeas corpus não vai além do direito de locomoção. Por ele não se tutelam outros direitos, nem mesmo os que, na faculdade de ir e vir ou ficar, têm a sua condição de exercício" (RF 222/336 - RT 173/24 - RT 338/99).

É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, enfatizou, uma vez mais, a estrita destinação constitucional do remédio de habeas corpus, proferindo, então, decisões consubstanciadas em acórdãos assim ementados:

"Após a Reforma Constitucional de 1926, e com a cessação da doutrina brasileira do habeas corpus, esse remédio processual passou a ter pertinência somente nos casos em que ocorrer situação de risco efetivo ou de dano potencial à liberdade de locomoção física do paciente ('jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque'). Precedentes."

(HC 80.199-MT, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

"A função clássica do habeas corpus restringe-se à estreita tutela da imediata liberdade de locomoção física das pessoas.

- A ação de habeas corpus - desde que inexistente qualquer situação de dano efetivo ou de risco potencial ao jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque - não se revela cabível, mesmo quando ajuizada para discutir eventual nulidade do processo penal em que proferida decisão condenatória definitivamente executada.

Esse entendimento decorre da circunstância histórica de a Reforma Constitucional de 1926 - que importou na cessação da doutrina brasileira do habeas corpus - haver restaurado a função clássica desse extraordinário remédio processual, destinando-o, quanto à sua finalidade, à específica tutela jurisdicional da imediata liberdade de locomoção física das pessoas. Precedentes."

(HC 80.575-RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

Sendo assim, e considerando que, na controvérsia narrada pela ora impetrante, não se expõe a risco ou a gravame o status libertatis do magistrado federal em questão - pois foi ele punido com a sanção disciplinar da censura (LOMAN, art. 42, II, c/c o art. 44) -, torna-se evidente, quanto a essa específica punição administrativa, que inexiste, para efeito de incidência da norma inscrita no art. 5º, LXVIII, da Constituição, qualquer situação de litigiosidade que afete a imediata liberdade de locomoção física do paciente, razão pela qual não há como inferir, da situação em análise, qualquer possibilidade de ofensa ao direito de ir, vir ou permanecer daquele em cujo favor foi impetrado o presente habeas corpus.

Desse modo, e no que se refere à punição disciplinar em questão, não conheço da presente ação de habeas corpus.

Conheço, no entanto, deste writ constitucional, no ponto em que impugna a instauração de procedimento de investigação penal destinado a apurar a suposta participação do ora paciente em prática delituosa.

Passo, em conseqüência, a apreciar o pedido de medida liminar que a impetrante deduziu na presente sede processual.

Cumpre enfatizar que a mera instauração de inquérito policial, que objetive a investigação de fatos considerados criminosos pelo ordenamento positivo, não constitui, só por si, ato capaz de caracterizar situação de injusto constrangimento, mesmo porque se impõe ao Poder Público, nos casos de delitos perseguíveis mediante ação penal pública incondicionada, adotar as providências necessárias ao integral esclarecimento da prática delituosa.

Por tal razão, firmou-se, nesta Suprema Corte, orientação jurisprudencial no sentido de que "a simples apuração da notitia criminis não constitui constrangimento ilegal a ser corrigido pela via do habeas corpus" (RTJ 78/138).

Havendo suspeita de crime, e existindo elementos idôneos de informação que autorizem a investigação penal do episódio delituoso, torna-se essencial proceder à ampla apuração dos fatos, satisfazendo-se, desse modo, a um imperativo inafastável, fundado na necessidade ético-jurídica de sempre fazer prevalecer a verdade real.

A requisição judicial de inquérito policial, determinada com o objetivo de promover investigação penal sobre a prática do crime de abuso de autoridade, não constitui, por isso mesmo, ato configurador de injusto constrangimento, especialmente se a conduta sob apuração assumir, em tese, a qualificação de fato revestido de tipicidade penal (RT 582/418), como parece ocorrer no caso.

Cabe referir, neste ponto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cuja orientação firmou-se no sentido de que, havendo suspeita fundada de crime, legitima-se a instauração de inquérito policial (RT 590/450), pois o trancamento da investigação penal somente se justificaria se os fatos pudessem, desde logo, evidenciar-se como "inexistentes ou não configurantes, em tese, de infração penal" (RT 620/368).

Esse entendimento - que se reflete na jurisprudência dos Tribunais (RT 598/321 - RT 603/365 - RT 610/321 - RT 639/296-297 - RT 729/590) - também encontra apoio em autorizado magistério doutrinário, como se vê da lição de JULIO FABBRINI MIRABETE ("Código de Processo Penal Interpretado", p. 1.424, item n. 648.2, 7ª ed., 2000, Atlas):

"Em regra, o habeas corpus não é meio para trancar inquérito policial, porque, para a instauração do procedimento inquisitório, basta haver elementos indicativos da ocorrência de fato que, em tese, configura ilícito penal, e indícios que apontem determinada pessoa ou determinadas pessoas como participantes do fato típico e antijurídico. Se os fatos configuram crime em tese, o inquérito policial não pode ser trancado por falta de justa causa." (grifei)

Sendo assim, e tendo presentes as razões expostas, indefiro o pedido de medida liminar, eis que não se reveste de plausibilidade jurídica a pretensão deduzida pela ora impetrante.

2. Considerando que já foram prestadas as informações pelo órgão ora apontado como coator (fls. 250/258), ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 1º de agosto de 2001.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

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