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PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO
Vistos,
relatados e discutidos estes autos de "HABEAS CORPUS" N° 339.463-3/O, da
Comarca de ATIBAIA, em que é impetrante a Belª. CINTIA CRISTINA PIZZO MELARE,
sendo paciente FERNANDO
RABELLO MARCHESAN:
ACORDAM,
em Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por
maioria de votos, denegar a ordem, contra o voto do Relator sorteado, que a
concedia.
I
- O paciente foi denunciado como incurso no art. 16 da Lei 6.368/76 porque, no
dia 01.11.98, foi surpreendido quando trazia consigo, para uso próprio, um
frasco de lança perfume.
A
denúncia foi recebida e aguarda-se manifestação do paciente sobre proposta de
suspensão do processo a ele oferecida.
Pretende
através deste "writ" o trancamento da ação penal em razão da extinção
de sua punibilidade nos termos do art. 107 , III do C.P.
E
isso porque a Resolução n° 104 de 06.12.2000 da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, publicada no dia seguinte, retirou o cloreto de etila da Lista F 2,
que relaciona substâncias entorpecentes ou psicotrópicas, colocando-o na D 2,
que enumera os insumos químicos precursores,
que não são proibidos, mas apenas controlados.
Alegou,
também, que a republicação dessa resolução em 15.12.2000, como retificação
da original por incorreção, é lei nova e não pode retroagir.
Sem
razão o impetrante, entretanto, em sua pretensão.
Com
efeito, como ele mesmo reconhece e se verifica pelos "considerandos"
da Resolução n° 104 da ANVS, a razão da exclusão do cloreto de etila da
Lista F 2 da Portaria SVS/MS n° 344 de 12.05.98 foi a de que a mesma
relacionava substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil,
o que impedia seu emprego na indústria química.
Assim,
havia necessidade de se possibilitar sua utilização por esta, o que não
implicava, necessariamente, em se abolir o seu reconhecimento como substância
psicotrópica.
Na
primitiva edição e publicação da Resolução n° 104, a alteração
constante do art. 2° fez a inclusão do cloreto de etila na Lista D 2,
correspondente a insumos químicos utilizados como precursores para a fabricação
e síntese de entorpecentes e outros psicotrópicos, o que certamente
não corresponde à melhor classificação do mesmo e à finalidade pretendida.
Sendo
manifesto o erro material, foi ele corrigido com a reedição e republicação
de 15.12.2000, incluindo-se o cloreto de etila na Lista B 1 da Portaria SVS/MS n°
344 de 12.05.98, que relaciona as substâncias psicotrópicas não proscritas
no Brasil.
Retificação
regular que tem, à evidência, efeito retroativo.
Outrossim,
verifica-se que a primeira edição e publicação foram determinadas pelo
Diretor-Presidente da ANVS, ad referendum da respectiva Diretoria
Colegiada, que certamente não as referendou, tanto que determinou a reedição
e republicação correta de 15.12.2000 conforme
deliberado
na posterior reunião realizada em 13.12.2000 (fls. 63/65).
Aliás,
examinando-se os artigos 11 e 13 do Dec. 3.029 de 16.04.99, que aprova o
Regulamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, verifica-se que à
Diretoria Colegiada cabe, com exclusividade, editar normas sobre matérias de
competência da Agência (inciso IV do art. 11), cabendo ao Diretor Presidente a
representação da Agência, a presidência de reuniões da Diretoria, o
cumprimento das decisões desta e a decisão nas deliberações em caso de
empate e ad referendum em questões de urgência.
Assim,
editando norma, ainda que sob o argumento de urgência, o Diretor Presidente
atuou fora de sua competência, já que tal conduta não se confunde com mera
decisão.
Inquestionável,
assim, a validade retroativa da Resolução n° 104 nos termos em que foi
publicada em 15.12.2000.
Não
bastasse isso, mesmo em se admitindo a tese do impetrante de exclusão do
cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas ou entorpecentes, não
seria caso de aplicação do art. 107, III do C.P. .
E
isso porque, muito embora a controvérsia existente, entende-se que por se
tratar de norma complementar, ela não retroage.
Com
efeito, o art. 16 da Lei 6.368/76, no qual o paciente está incurso, é norma
penal em branco, cuja complementação encontra-se na referida portaria e
respectivas listas.
E
ainda que houvesse revogação destas, aquele continuaria plenamente em vigência.
Nesse
sentido a lição de Magalhães Noronha, transcrevendo a de Soler, que resume o
entendimento dominante na doutrina e que tem o apoio de Nelson Hungria e
Frederico Marques:
"Só
influi a variação da norma complementar quando importe verdadeira alteração
da figura abstrata do direito penal, e não mera circlU1stância que, na
realidade, deixa subsistente a norma; assim, por exemplo, o fato de que uma lei
tire a certa moeda o seu caráter nenhuma influência tem sobre as condenações
existentes por falsificação de moeda, pois não variou o objeto abstrato da
tutela penal; não variou a norma penal que continua sendo idêntica"
(Direito Penal, ed. 1991, vol. I, pag. 80).
III
- Isto posto, denega-se o presente "habeas corpus" impetrado pela Belª.
Cintia Cristina Pizzo Melare em favor de Fernando Rabello Marchesan.
O
julgamento teve a dos Desembargadores DANTE BUSANA (Presidente, sem voto), LUZIA
GALVÃO LOPES, com voto vencedor e CELSO LIMONGI, com voto vencido e declaração.
São
Paulo, 08 de março de 2001.
GOMES
DE AMORIM
Relator
designado
DECLARAÇÃO
DE VOTO VENCIDO
HABEAS-CORPUS
N° 339.463-3/O - ATIBAIA
Com
a devida vênia da douta maioria, meu voto concedia a ordem, para trancar a ação
penal, extinta a punibilidade do paciente, com fundamento no artigo 107, n°
III, do Código Penal.
A
ordem de habeas-corpus foi impetrada com inteligência: busca o trancamento da ação
penal e extinção da punibilidade, sob o fundamento de que lei mais benigna,
descriminalizando o fato, deve retroagir. E isso, porque, a Resolução n° 104,
de 6 de dezembro de 2.000, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária,
retirou da lista de substâncias entorpecentes o cloreto
de etila, substância básica de lança-perfume. Pouco importa, ainda, que a
Resolução fosse republicada em 15 de dezembro, pois, no período de 7 a 14
daquele mês, o cloreto de etila deixou de ser considerado substância proibida.
Esses
os termos da impetração.
E
os autos demonstraram, inequivocamente, que o paciente, antes do dia 7 de
dezembro passado, teve apreendido consigo um frasco de lança perfume. O laudo
de exame químico toxicológico,
copiado a fls. 84, confirma que se tratava de frasco em que se encerravam
setenta mililitros de cloreto de etila, substância então tida como
entorpecente e proibida.
Como
se percebe, a espécie -a irretroatividade da lex mitior extrapenal que
integra as normas punitivas em branco - trata de uma questão das mais
controvertidas em Direito Penal, "em face
da boa qualidade dos argumentos advindos de ambos os lados", como advertia
Basileu Garcia, em suas "Instituições de Direito Penal", vol. I, pág.
155.
A
doutrina estrangeira igualmente se divide, José Frederico Marques lembra que são
pela irretroatividade da lei penal em branco juristas do porte de Manzini, e,
entre nós, de Nelson Hungria
e do próprio José Frederico Marques. Favoráveis à retroatividade estão,
entre os estrangeiros, Mezger, Asúa e Fontán Balestra, e, no Brasil, Basileu
Garcia. Atualmente, a jurisprudência desta E. Corte e do Supremo Tribunal se
orientam contra a retroatividade.
No
tocante aos crimes contra a economia, em que se viola a tabela de preços,
realmente a doutrina e a jurisprudência estrangeira se mostram contrárias à
retroatividade.
Tratando-se
de crime de pórte de entorpecente, seria estranho que, retirada da proibição
determinada substância, sob o fundamento, por exemplo, de que não causava
dependência física e psíquica, o agente ainda teria de ser condenado, por ter
praticado o fato antes da mudança da lista de substância proibidas.
José
Frederico Marques, embora partidário da irretroatividade da lei penal em
branco, admite certas distinções: "Se uma lei penal fala em menoridade
pura e simples, para a tutela, então à
lei civil cumpre cobrir o branco assim existente. Alterada a última, com fixação
do termo final da situação da alieni juris em idade inferior à da lei
até então vigente, não há dúvida de que deve ser aplicado retroativamente o
novo preceito, embora extrapenal, porque a tutela da menoridade pela norma
punitiva está ligada estreitamente ao conceito desta pelo direito
privado". Cf. "Tratado de Direito Penal", vol. I,
pág. 276, Bookseller, 1ª edição, 1997.
Preciosa,
igualmente, a lição de Heleno Cláudio Fragoso: "A solução que a
doutrina formula para tais casos não é pacífica. Alguns autores entendem que
a alteração dos complementos da lei penal em branco não afeta em caso algum a
punibilidade do fato. Afirma-se que a norma permanece em vigor, cessando apenas
os elementos ocasionais. A doutrina prevalente pronuncia-se
em contrário, entendendo que a alteração das disposições que integram a lei
penal em branco modificam o estado jurídico total em que o réu se acha, não
podendo deixar de ser consideradas caso venham a beneficiar o acusado.
Parece-nos que a hipótese não permite solução unitária. Em regra, a alteração
dos complementos da norma penal em branco, se descriminar a ação ou beneficiar
o réu, não pode deixar de retroagir. As disposições que completam
as leis penais em branco integram o conteúdo de fato da conduta incriminada e
sua alteração representa uma nova valoração jurídica do mesmo. Todavia, a
regra que estabelecemos não pode ser aplicada em casos como os de tabelamento
de preços, dado o caráter excepcional desses tabelamentos, feitos para atender
a situações de escassez de gêneros e dificuldades na produção e
abastecimento" ("Lições de Direito Penal", pág. 106, 8ª edição,
Forense, Rio de Janeiro, 1985).
Ora,
bem ou mal, certa ou erradamente, por equívoco ou porque assim o quis, o
cloreto de etila foi retirado, por decisão da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, da lista de produtos
proibidos. Isto é, o delito de porte de entorpecente se caracteriza por ser
norma penal em branco e, diante da Resolução n° 104, de 6 de dezembro de
2.000, foi alterado o complemento do tipo penal. Em outras palavras, ainda: ao
intérprete já era lícito, no dia da publicação
da Resolução, 7 de dezembro, considerar que se alterou a própria valorização
jurídica dos fatos, o que, na citada lição de Heleno, Cláudio Fragoso,
significa retroatividade da lei mais benigna.
Pouco
importa que, em 14 de dezembro, nova publicação foi providenciada, com
retificação: a Resolução n° 104 já ingressara em nosso ordenamento jurídico,
produzindo efeitos imediatos. Se houve equívoco, é irrelevante para o intérprete,
principalmente porque estamos em tema de direito penal e a Constituição da República,
em seu artigo 5°, inciso XL, proíbe a retroatividade da lei penal, salvo para
beneficiar o réu, como na espécie.
Diante,
pois, de princípio constitucional autorizador da retroatividade da lei penal
mais benigna, do que decorre o art. 2° do Código Penal, e havendo alteração
da valorização jurídica do fato, embora equivocadamente, dúvida não
subsiste de que a conduta do paciente foi atingida pela abolitio criminis,
incidindo sobre ela la loi plus douce.
É
importante, igualmente, salientar que, em época passada, o DIMEP procedera da
mesma forma: o cloreto de etila era substância proibida, incluída na Portaria
de 27.1.83. Mas, a Portaria de 4.4.84 a excluiu da lista, configurando-se a hipótese
de abolitio criminis. A Portaria 2/85, de 13.3.85, novamente incluiu o
cloreto de etila na lista.
Não
é difícil perceber a dificuldade do Estado-Executivo em incluir ou excluir tal
substância da lista de substâncias proibidas.
Note-se
que a exclusão em 7 de dezembro último não se deveu a mero erro material, mas
a critério político, de oportunidade, e, arrependendo-se dessa exclusão, foi
retificada a Portaria para novamente incluir na lista aquela substância.
O
Supremo Tribunal Federal, à época, considerou que se tratava de hipótese de abolitio
criminis, "não se podendo falar em ultratividade da norma complementar
materializada na Portaria
n° 1/83, que incluiu o cloreto de etila, depois excluído, nem evidentemente em
retroatividade da Portaria n° 2/85, publicada em 13.3.85, que novamente incluiu
o cloreto de etila, por não se tratar de norma excepcional ou temporária, na
forma do que dispõe o art. 3° do Código Penal, não podendo, portanto, ser
afastada a chamada retroatividade benéfica" (cf. STF - HC 68.904, rel.
Min. Carlos Velloso - RTJ 139/216 e JSTF 164/331), apud Alberto Silva Franco et
alli, "Leis especiais e sua interpretação jurisprudencial", pág.
1.025).
Não
foi outra a decisão do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar,
à época, 1985, caso de porte de lança-perfume, como se vê, na mesma obra de
Alberto Silva Franco, pág. 1.032, insistindo em que, retirado o cloreto de
etila da lista das substâncias proibidas, é caso de aplicação retroativa e
extinção da punibilidade pela abolitio criminis.
Nem
se argumentará com a impropriedade do habeas-corpus para a aplicação da lex
mitior: acórdão da lavra do eminente Des. Cunha Camargo, então Juiz do
Tribunal de Alçada Criminal,
colocou a questão em seus devidos termos, decidindo que "Não obstante os
termos do art. 13 da Lei de Introdução ao CPP, mesmo em sede de habeas-corpus
é possível a aplicação retroativa da lei penal mais benigna, desde que em
seus autos sejam encontrados elementos suficientes para convencer de que se
trata do mesmo crime, punido diferentemente no velho e no novo estatuto penal. O
princípio segundo o qual nenhum juiz pode conceder habeas-corpus
contra o ato do próprio juízo sofre exceção quando o paciente pleiteia a
aplicação retroativa de lei penal mais benigna" ("JUTACRIMIN", 47/350).
Ademais,
estes autos mostram que a ação penal se encontrava em andamento, com audiência
marcada para o dia 20 de março, p.f. E as informações prestadas pela nobre
autoridade judiciária
revelaram que é seu entendimento não aplicar-se ao caso em julgamento, a lei
mais benigna, a mostrar, em suma, estar o paciente sofrendo constrangimento
ilegal.
Por
tais razões, e sempre com a vênia devida, concedia a ordem, para trancar a ação
penal, extinta a punibilidade do paciente, com fundamento no art. 107, n° III,
do Código Penal.
Celso Limongi
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