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Decisões: Pedido de HC, no qual houve a discussão sobre a "abolitio criminis" no caso de uso de lança-perfume (cloreto de etila), devido à Resolução 104 de 06/dez/00 da ANVS. (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

TACRIM 11

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de "HABEAS CORPUS" N° 339.463-3/O, da Comarca de ATIBAIA, em que é impetrante a Belª. CINTIA CRISTINA PIZZO MELARE, sendo paciente FERNANDO RABELLO MARCHESAN:

ACORDAM, em Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, denegar a ordem, contra o voto do Relator sorteado, que a concedia.

I - O paciente foi denunciado como incurso no art. 16 da Lei 6.368/76 porque, no dia 01.11.98, foi surpreendido quando trazia consigo, para uso próprio, um frasco de lança perfume.

A denúncia foi recebida e aguarda-se manifestação do paciente sobre proposta de suspensão do processo a ele oferecida.

Pretende através deste "writ" o trancamento da ação penal em razão da extinção de sua punibilidade nos termos do art. 107 , III do C.P.

E isso porque a Resolução n° 104 de 06.12.2000 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, publicada no dia seguinte, retirou o cloreto de etila da Lista F 2, que relaciona substâncias entorpecentes ou psicotrópicas, colocando-o na D 2, que enumera os insumos químicos precursores, que não são proibidos, mas apenas controlados.

Alegou, também, que a republicação dessa resolução em 15.12.2000, como retificação da original por incorreção, é lei nova e não pode retroagir.

Sem razão o impetrante, entretanto, em sua pretensão.

Com efeito, como ele mesmo reconhece e se verifica pelos "considerandos" da Resolução n° 104 da ANVS, a razão da exclusão do cloreto de etila da Lista F 2 da Portaria SVS/MS n° 344 de 12.05.98 foi a de que a mesma relacionava substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil, o que impedia seu emprego na indústria química.

Assim, havia necessidade de se possibilitar sua utilização por esta, o que não implicava, necessariamente, em se abolir o seu reconhecimento como substância psicotrópica.

Na primitiva edição e publicação da Resolução n° 104, a alteração constante do art. 2° fez a inclusão do cloreto de etila na Lista D 2, correspondente a insumos químicos utilizados como precursores para a fabricação e síntese de entorpecentes e outros psicotrópicos, o que certamente não corresponde à melhor classificação do mesmo e à finalidade pretendida.

Sendo manifesto o erro material, foi ele corrigido com a reedição e republicação de 15.12.2000, incluindo-se o cloreto de etila na Lista B 1 da Portaria SVS/MS n° 344 de 12.05.98, que relaciona as substâncias psicotrópicas não proscritas no Brasil.

Retificação regular que tem, à evidência, efeito retroativo.

Outrossim, verifica-se que a primeira edição e publicação foram determinadas pelo Diretor-Presidente da ANVS, ad referendum da respectiva Diretoria Colegiada, que certamente não as referendou, tanto que determinou a reedição e republicação correta de 15.12.2000 conforme

deliberado na posterior reunião realizada em 13.12.2000 (fls. 63/65).

Aliás, examinando-se os artigos 11 e 13 do Dec. 3.029 de 16.04.99, que aprova o Regulamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, verifica-se que à Diretoria Colegiada cabe, com exclusividade, editar normas sobre matérias de competência da Agência (inciso IV do art. 11), cabendo ao Diretor Presidente a representação da Agência, a presidência de reuniões da Diretoria, o cumprimento das decisões desta e a decisão nas deliberações em caso de empate e ad referendum em questões de urgência.

Assim, editando norma, ainda que sob o argumento de urgência, o Diretor Presidente atuou fora de sua competência, já que tal conduta não se confunde com mera decisão.

Inquestionável, assim, a validade retroativa da Resolução n° 104 nos termos em que foi publicada em 15.12.2000.

Não bastasse isso, mesmo em se admitindo a tese do impetrante de exclusão do cloreto de etila da lista de substâncias psicotrópicas ou entorpecentes, não seria caso de aplicação do art. 107, III do C.P. .

E isso porque, muito embora a controvérsia existente, entende-se que por se tratar de norma complementar, ela não retroage.

Com efeito, o art. 16 da Lei 6.368/76, no qual o paciente está incurso, é norma penal em branco, cuja complementação encontra-se na referida portaria e respectivas listas.

E ainda que houvesse revogação destas, aquele continuaria plenamente em vigência.

Nesse sentido a lição de Magalhães Noronha, transcrevendo a de Soler, que resume o entendimento dominante na doutrina e que tem o apoio de Nelson Hungria e Frederico Marques:

"Só influi a variação da norma complementar quando importe verdadeira alteração da figura abstrata do direito penal, e não mera circlU1stância que, na realidade, deixa subsistente a norma; assim, por exemplo, o fato de que uma lei tire a certa moeda o seu caráter nenhuma influência tem sobre as condenações existentes por falsificação de moeda, pois não variou o objeto abstrato da tutela penal; não variou a norma penal que continua sendo idêntica" (Direito Penal, ed. 1991, vol. I, pag. 80).

III - Isto posto, denega-se o presente "habeas corpus" impetrado pela Belª. Cintia Cristina Pizzo Melare em favor de Fernando Rabello Marchesan.

O julgamento teve a dos Desembargadores DANTE BUSANA (Presidente, sem voto), LUZIA GALVÃO LOPES, com voto vencedor e CELSO LIMONGI, com voto vencido e declaração.

São Paulo, 08 de março de 2001.

GOMES DE AMORIM

Relator designado

 

DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO

HABEAS-CORPUS N° 339.463-3/O - ATIBAIA

Com a devida vênia da douta maioria, meu voto concedia a ordem, para trancar a ação penal, extinta a punibilidade do paciente, com fundamento no artigo 107, n° III, do Código Penal.

A ordem de habeas-corpus foi impetrada com inteligência: busca o trancamento da ação penal e extinção da punibilidade, sob o fundamento de que lei mais benigna, descriminalizando o fato, deve retroagir. E isso, porque, a Resolução n° 104, de 6 de dezembro de 2.000, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, retirou da lista de substâncias entorpecentes o cloreto de etila, substância básica de lança-perfume. Pouco importa, ainda, que a Resolução fosse republicada em 15 de dezembro, pois, no período de 7 a 14 daquele mês, o cloreto de etila deixou de ser considerado substância proibida.

Esses os termos da impetração.

E os autos demonstraram, inequivocamente, que o paciente, antes do dia 7 de dezembro passado, teve apreendido consigo um frasco de lança perfume. O laudo de exame químico toxicológico, copiado a fls. 84, confirma que se tratava de frasco em que se encerravam setenta mililitros de cloreto de etila, substância então tida como entorpecente e proibida.

Como se percebe, a espécie -a irretroatividade da lex mitior extrapenal que integra as normas punitivas em branco - trata de uma questão das mais controvertidas em Direito Penal, "em face da boa qualidade dos argumentos advindos de ambos os lados", como advertia Basileu Garcia, em suas "Instituições de Direito Penal", vol. I, pág. 155.

A doutrina estrangeira igualmente se divide, José Frederico Marques lembra que são pela irretroatividade da lei penal em branco juristas do porte de Manzini, e, entre nós, de Nelson Hungria e do próprio José Frederico Marques. Favoráveis à retroatividade estão, entre os estrangeiros, Mezger, Asúa e Fontán Balestra, e, no Brasil, Basileu Garcia. Atualmente, a jurisprudência desta E. Corte e do Supremo Tribunal se orientam contra a retroatividade.

No tocante aos crimes contra a economia, em que se viola a tabela de preços, realmente a doutrina e a jurisprudência estrangeira se mostram contrárias à retroatividade.

Tratando-se de crime de pórte de entorpecente, seria estranho que, retirada da proibição determinada substância, sob o fundamento, por exemplo, de que não causava dependência física e psíquica, o agente ainda teria de ser condenado, por ter praticado o fato antes da mudança da lista de substância proibidas.

José Frederico Marques, embora partidário da irretroatividade da lei penal em branco, admite certas distinções: "Se uma lei penal fala em menoridade pura e simples, para a tutela, então à lei civil cumpre cobrir o branco assim existente. Alterada a última, com fixação do termo final da situação da alieni juris em idade inferior à da lei até então vigente, não há dúvida de que deve ser aplicado retroativamente o novo preceito, embora extrapenal, porque a tutela da menoridade pela norma punitiva está ligada estreitamente ao conceito desta pelo direito privado". Cf. "Tratado de Direito Penal", vol. I, pág. 276, Bookseller, 1ª edição, 1997.

Preciosa, igualmente, a lição de Heleno Cláudio Fragoso: "A solução que a doutrina formula para tais casos não é pacífica. Alguns autores entendem que a alteração dos complementos da lei penal em branco não afeta em caso algum a punibilidade do fato. Afirma-se que a norma permanece em vigor, cessando apenas os elementos ocasionais. A doutrina prevalente pronuncia-se em contrário, entendendo que a alteração das disposições que integram a lei penal em branco modificam o estado jurídico total em que o réu se acha, não podendo deixar de ser consideradas caso venham a beneficiar o acusado. Parece-nos que a hipótese não permite solução unitária. Em regra, a alteração dos complementos da norma penal em branco, se descriminar a ação ou beneficiar o réu, não pode deixar de retroagir. As disposições que completam as leis penais em branco integram o conteúdo de fato da conduta incriminada e sua alteração representa uma nova valoração jurídica do mesmo. Todavia, a regra que estabelecemos não pode ser aplicada em casos como os de tabelamento de preços, dado o caráter excepcional desses tabelamentos, feitos para atender a situações de escassez de gêneros e dificuldades na produção e abastecimento" ("Lições de Direito Penal", pág. 106, 8ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1985).

Ora, bem ou mal, certa ou erradamente, por equívoco ou porque assim o quis, o cloreto de etila foi retirado, por decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, da lista de produtos proibidos. Isto é, o delito de porte de entorpecente se caracteriza por ser norma penal em branco e, diante da Resolução n° 104, de 6 de dezembro de 2.000, foi alterado o complemento do tipo penal. Em outras palavras, ainda: ao intérprete já era lícito, no dia da publicação da Resolução, 7 de dezembro, considerar que se alterou a própria valorização jurídica dos fatos, o que, na citada lição de Heleno, Cláudio Fragoso, significa retroatividade da lei mais benigna.

Pouco importa que, em 14 de dezembro, nova publicação foi providenciada, com retificação: a Resolução n° 104 já ingressara em nosso ordenamento jurídico, produzindo efeitos imediatos. Se houve equívoco, é irrelevante para o intérprete, principalmente porque estamos em tema de direito penal e a Constituição da República, em seu artigo 5°, inciso XL, proíbe a retroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu, como na espécie.

Diante, pois, de princípio constitucional autorizador da retroatividade da lei penal mais benigna, do que decorre o art. 2° do Código Penal, e havendo alteração da valorização jurídica do fato, embora equivocadamente, dúvida não subsiste de que a conduta do paciente foi atingida pela abolitio criminis, incidindo sobre ela la loi plus douce.

É importante, igualmente, salientar que, em época passada, o DIMEP procedera da mesma forma: o cloreto de etila era substância proibida, incluída na Portaria de 27.1.83. Mas, a Portaria de 4.4.84 a excluiu da lista, configurando-se a hipótese de abolitio criminis. A Portaria 2/85, de 13.3.85, novamente incluiu o cloreto de etila na lista.

Não é difícil perceber a dificuldade do Estado-Executivo em incluir ou excluir tal substância da lista de substâncias proibidas.

Note-se que a exclusão em 7 de dezembro último não se deveu a mero erro material, mas a critério político, de oportunidade, e, arrependendo-se dessa exclusão, foi retificada a Portaria para novamente incluir na lista aquela substância.

O Supremo Tribunal Federal, à época, considerou que se tratava de hipótese de abolitio criminis, "não se podendo falar em ultratividade da norma complementar materializada na Portaria n° 1/83, que incluiu o cloreto de etila, depois excluído, nem evidentemente em retroatividade da Portaria n° 2/85, publicada em 13.3.85, que novamente incluiu o cloreto de etila, por não se tratar de norma excepcional ou temporária, na forma do que dispõe o art. 3° do Código Penal, não podendo, portanto, ser afastada a chamada retroatividade benéfica" (cf. STF - HC 68.904, rel. Min. Carlos Velloso - RTJ 139/216 e JSTF 164/331), apud Alberto Silva Franco et alli, "Leis especiais e sua interpretação jurisprudencial", pág. 1.025).

Não foi outra a decisão do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar, à época, 1985, caso de porte de lança-perfume, como se vê, na mesma obra de Alberto Silva Franco, pág. 1.032, insistindo em que, retirado o cloreto de etila da lista das substâncias proibidas, é caso de aplicação retroativa e extinção da punibilidade pela abolitio criminis.

Nem se argumentará com a impropriedade do habeas-corpus para a aplicação da lex mitior: acórdão da lavra do eminente Des. Cunha Camargo, então Juiz do Tribunal de Alçada Criminal, colocou a questão em seus devidos termos, decidindo que "Não obstante os termos do art. 13 da Lei de Introdução ao CPP, mesmo em sede de habeas-corpus é possível a aplicação retroativa da lei penal mais benigna, desde que em seus autos sejam encontrados elementos suficientes para convencer de que se trata do mesmo crime, punido diferentemente no velho e no novo estatuto penal. O princípio segundo o qual nenhum juiz pode conceder habeas-corpus contra o ato do próprio juízo sofre exceção quando o paciente pleiteia a aplicação retroativa de lei penal mais benigna" ("JUTACRIMIN", 47/350).

Ademais, estes autos mostram que a ação penal se encontrava em andamento, com audiência marcada para o dia 20 de março, p.f. E as informações prestadas pela nobre autoridade judiciária revelaram que é seu entendimento não aplicar-se ao caso em julgamento, a lei mais benigna, a mostrar, em suma, estar o paciente sofrendo constrangimento ilegal.

Por tais razões, e sempre com a vênia devida, concedia a ordem, para trancar a ação penal, extinta a punibilidade do paciente, com fundamento no art. 107, n° III, do Código Penal.

 Celso Limongi

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