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Decisões: Dirigir sem habilitação e tipificação.

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TACRIM 11

DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO E TIPIFICAÇÃO (INFORMATIVO STF Nº 230, RHC 80.362-SP, REL. MIN. ILMAR GALVÃO, DE 28.05 A 01.06.01).

Relatório: O Ministério Público Federal manifesta recurso ordinário contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, que denegou habeas corpus impetrado pela Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, com atuação na Assistência Judiciária, em benefício de José Matos Braga.

Esclarece o recorrente que em 28.07.98 foi lavrado termo circunstanciado informando que o paciente violara o art. 32 da Lei das Contravenções Penais ao conduzir veículo automotor sem a devida habilitação. O MM. Juiz, considerando que a referida contravenção penal foi derrogada pelo atual Código de Trânsito Brasileiro, julgou extinta a punibilidade do paciente, por atipicidade, porque não vislumbrara na conduta do agente, que dirigia sem habilitação, sem gerar perigo de dano, a elementar prevista no art. 309 do referido estatuto (fls. 12/13).

Houve recurso do parquet que resultou provido por acórdão do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, sob o fundamento de que a contravenção de direção inabilitada de veículos permanece íntegra e em pleno vigor (fls. 15/21).

Renovada a audiência preliminar, o Ministério Público propôs a prestação de serviços à comunidade durante quatro semanas, trabalhando oito horas semanais, que foi aceita pela defensora apenas para evitar prejuízo para o paciente, impetrando-se, em seguida, habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça.

No writ insistiu-se na alegação de que o Código de Trânsito Brasileiro não pune como crime a condução de veículo sem habilitação, que considera apenas como infração administrativa, tanto que,  no inc. I do art. 162, aplica multa e apreensão do veículo. Alegou-se, ainda, que o legislador só tipificou criminalmente a conduta (conduzir veículo automotor sem a devida habilitação) quando possa gerar perigo concreto de dano, o que, no caso, não ocorreu.

O acórdão indeferiu o pedido, nos termos da ementa seguinte: 

"HABEAS  CORPUS - LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS - DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO - CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO - COEXISTÊNCIA - POSSIBILIDADE.

- A contravenção penal "dirigir sem habilitação", prevista no art. 32 da Lei das Contravenções Penais, não foi revogada pelo art. 309 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito). Este versa sobre perigo concreto e aquele, sobre perigo abstrato. As duas figuras são distintas e coexistem perfeitamente.

- Ordem denegada." 

Daí o presente recurso ordinário, no qual o Ministério Público Federal sustenta haver sido contrariado pelo acórdão recorrido o disposto nos arts. 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal; 648, inc. I, do CPP; e 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil.

Admitido o recurso pelo despacho de fl. 81, subiram os autos a esta Corte, havendo a Procuradoria-Geral da República, em parecer do Dr. Edson Oliveira de Almeida, opinado pelo provimento.

É o relatório.

Trechos do Voto: Quanto à possibilidade de conhecimento do recurso, aduz a douta Procuradoria-Geral da República, verbis (fls. 87/94):

 "Preliminarmente, embora cominada para a contravenção de que se trata apenas a pena de multa, tem-se como cabível o habeas corpus, e conseqüentemente o recurso ordinário, uma vez que, ao homologar a transação, o juiz, sem observar o § 1º do art. 76 da Lei nº 9.099/95, impôs ao paciente pena restritiva de direitos. Tais as circunstâncias, não tem aplicação o precedente fixado no RHC 80.009-SP, re. Min. Ilmar Galvão, DJU 28.04.2000." 

De fato, trata-se de hipótese diversa da analisada por esta Turma no HC nº 80.009, de minha relatoria, em que, nos termos da pacífica jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, se declarou descabido o habeas corpus quando se alega constrangimento ilegal decorrente da condenação à pena de multa, uma vez que a Lei nº 9.268/96 afastou a sua conversão em prisão ou em pena restritiva de direitos.

No caso, quando da transação penal, foi proposta pena restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade, que, conquanto não possa ser convertida em privativa de liberdade - seja por não se tratar de sanção condenatória (HC nº 80.164), seja pelo fato de o art. 32 da LCP só cominar pena de multa -, pode ensejar constrangimento ilegal suscetível de ser remediado por meio de habeas corpus, haja vista limitar a liberdade de locomoção do paciente que, ademais, segundo o recurso, estaria sendo processado por conduta atípica.

Assim, conheço do recurso.

Passo à análise do mérito do pedido.

Consoante relatei, cinge-se a controvérsia à questão de saber se a conduta de direção de veículo automotor, em via pública, sem a devida habilitação (art. 32 da LCP), subsiste, ou não, após a edição do Código de Trânsito Brasileiro, que, em seu art. 309, exigiu, para a caracterização da figura típica, a ocorrência do perigo concreto ao utilizar-se da expressão "perigo de dano".

A questão é controvertida, tendo a doutrina e a jurisprudência oscilado nos dois sentidos.

A manifestação do parquet, ao opinar pelo provimento do recurso, adotou a orientação de Damásio E. de Jesus, que, como Luiz Flávio Gomes, Fernando Capez, entre outros, conclui pela derrogação. Lê-se do parecer os seguintes trechos:

 

[...]

 

O acórdão recorrido, do Superior Tribunal de Justiça, ao denegar a ordem, tendo por incensurável o pronunciamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consignou, verbis (fls. 66/71):

"O Tribunal a quo, ao entender que o Código Nacional de Trânsito não aboliu a ilicitude da conduta "dirigir sem habilitação" prevista no art. 32 da Lei de Contravenções Penais, decidiu em harmonia com a jurisprudência desta E. 5ª Turma.

Aqui, tem-se reiteradamente proclamado que o art. 309 do CNT não revogou a norma contida no art. 32 da Lei de Contravenções, tendo, tão-somente, criado infração penal mais gravosa. Para sua configuração, há necessidade de, além de dirigir sem habilitação, gerar perigo concreto de dano à coletividade.

A coexistência, portanto, dos arts. 32 da LCP e art. 309 do CNT é perfeitamente possível. Sobre o tema incorporo as precisas considerações do Ministro Felix Fischer por ocasião do julgamento do RHC 8.345/SP, que assim expôs seu ponto de vista:

"A quaestio está resolvida no parecer da culta Subprocuradora-Geral da República Drª Julieta E. Fajardo Cavalcanti de Albuquerque, in verbis: "Todavia, sem desapreço ao magistério desses autores, não nos parece ultrapassada a distinção entre perigo concreto e abstrato. São duas formas de manifestação diferentes de perigo de dano que fundamentam, no particular, a subsistência do art. 32 da LCP, de aplicação residual em relação ao estatuído no art. 309 da CTB. O primeiro refere-se a perigo abstrato, que não precisa ser provado, bastando que se realize a conduta: a situação de perigo, presumida pelo legislador em caráter absoluto, não permite que o agente evidencie se seu comportamento foi de fato perigoso ou não. O segundo refere-se a perigo concreto, não presumido, que exige comprovação caso a caso. Assim também entende, entre outros, José Geraldo da Silva, in Código de Trânsito Brasileiro Anotado, Campinas: Bookseller, 1998, como podemos ver pela transcrição abaixo (p. 255):

"(...) Na expressão: "gerando perigo de dano", encontramos a exigência do perigo concreto, e não somente um perigo abstrato, presumido, como acontece com o art. 32, da LCP.

No caso de não existir esse perigo concreto, o fato será atípico ao CTB, tendo aplicação o art. 32 da LCP, que não está revogado em face do art. 309 do CTB. O art. 32, da LCP, continua em vigor, tendo aplicação residual, inclusive, no caso de dirigir embarcação a motor em águas públicas, sem a devida habilitação. (...)"

Ressalte-se que no ordenamento penal brasileiro outros dispositivos embasam sua tipologia na diferenciação entre perigo concreto e abstrato, traduzindo a potencialidade de dano ao bem jurídico sob tutela (cfr. art. 28 da LCP ao 132 do CP; arts. 29 e 30 da LCP ao art. 256 do CP). Logo, não prospera a assertiva de que mais de um comando legal reja a matéria. São figuras típicas distintas: incorre-se em uma ou em outra dependendo da abstração ou concretitude do perigo ao bem resguardado.

No mesmo compasso ainda salientamos a exposição doutrinária de Fernando de Almeida Pedroso em artigo publicado na Revista da APMP nº 18, ano 1998, p. 14:

"(...) Uma lei somente por outra é revogada, ocorrendo o fenômeno quando a norma implicitamente dispuser sobre a revogação da anterior (abrogação expressa) ou quando esta se torne antagônica, antinômica e contrastante com a ulterior, gerando  incompatibilidade (ab-rogação, tácita ou implícita). Nenhuma destas situações, entretanto, desponta ocorrente entre os artigos 32 da Lei das Contravenções Penais e o artigo 309 do Código de Trânsito Brasileiro. Ad primum, porque o art. 309 da Lei 9.503/97 não proclamou revogado o epigrafado dispositivo da lei contravencional. De outro turno, porque inexiste incompatibilidade entre os termos das disposições legais ora analisadas, emergindo entre elas relação de especialidade, e subsidiariedade, de modo que ambas subsistem, conservando sua autonomia. (...)"

Oportuno assinalar que o Superior Tribunal de Justiça, julgando posteriormente Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 240.400, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, decidiu, por unanimidade dos membros da Terceira Seção, no mesmo sentido do acórdão ora impugnado.

Em que pesem as considerações em contrário, principalmente no tocante à relevante discussão acerca da incriminação baseada no perigo presumido, entendo correto o aresto impugnado.

Com efeito, inexiste conflito entre a contravenção consubstanciada no art. 32 da LCP e a conduta prevista no art. 309 do CTB, não sendo possível falar-se em derrogação daquela por esta.

Como se depreende de sua leitura, os preceitos são diversos:

 

"Art. 32. Dirigir, sem a devida habilitação, veículo em via pública, ou embarcação a motor em águas públicas." (Lei das Contravenções Penais)

 

"Art. 309. Dirigir veículo automotor na via pública, sem a devida permissão para dirigir ou habilitação, ou ainda, se cassado ou suspenso o direito de dirigir, gerando perigo de dano." (Código de Trânsito Brasileiro)

 

Patente que pretendeu o legislador apenar de forma mais gravosa a conduta do inabilitado que dirige causando perigo concreto de dano, tipificando-a como crime (art. 309 do CTB), sem que, com isso, tenha considerado insignificante, do ponto de vista penal, a hipótese em que o perigo não ocorre de fato (perigo abstrato), previsto no art. 32 da LCP.

Também não procede o argumento de que a referida contravenção teria sido regulada pelo Código de Trânsito Brasileiro, quando em seus arts. 161 e 162 tipificou a conduta como ilícito administrativo, estando o infrator sujeito à multa e à apreensão do veículo. É que o fato de o CTB ter tratado o procedimento como infração administrativa não retira, por si, a eficácia da norma da Lei das Contravenções Penais, haja vista ser distinta a natureza de ambas, sendo passível, inclusive, de cumulação, conforme estabelece o próprio art. 161 do Código Nacional de Trânsito.

Sabidamente o novo Código de Trânsito Brasileiro foi mais rigoroso do que o anterior. Tanto que erige à categoria de crime antiga contravenção de direção perigosa na via pública (por embriaguez, direção em zique-zaque, excesso de velocidade, etc). Não parece razoável, por isso, entender que pretendeu ele reduzir a mera infração administrativa o fato de alguém dirigir veículo, em via pública, sem habilitação ou permissão.

Acrescente-se, ainda, que a tese da revogação do art. 32 da LCP pelo CTB valeria pela real impunidade de quem, sem a devida habilitação, dirige, na via pública, veículo que não lhe pertence, dada a óbvia dificuldade de ser-lhe imposta a pena de multa cominada para a infração administrativa prevista no art. 162 do referido Código.

Com essas considerações, conheço do recurso, mas lhe nego provimento.

Min. Sepúlveda Pertence

 

Trechos do Voto-vista: Discute-se a sobrevivência, no tocante ao trânsito terrestre, da contravenção do art. 32 LCP, dada a superveniência do art. 309 do Código de Trânsito Brasileiro, que definiu como crime "dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação, ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano".

Na Primeira Turma, em 18.12.2000, após reler o voto do relator, em. Ministro Ilmar Galvão, pedi vênia para dissentir com o seguinte voto-vista.

Não desconheço a correção, em tese, da afirmação final do voto do relator - a de que o fato de constituir infração administrativa não afasta, por si só, a incidência, sobre a hipótese cogitada -direção sem habilitação, sem causar perigo concreto de dano - do art. 32 da Lei das Contravenções Penais.

Mas, no que toca às infrações administrativas de trânsito, ela contraria disposição expressa do novo Código:

 

"Art. 161. Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste código, da legislação complementar ou das resoluções do Contran, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX."

 

O capítulo XIX é precisamente o que cuida dos "crimes de trânsito", vale dizer, dos "cometidos na direção de veículos automotores", dentre os quais só se inclui, a teor do art. 309, a direção sem habilitação ou permissão vigentes, quando gere "perigo de dano".

É dizer que só nessa hipótese - o de constituir a infração administrativa fato previsto como crime no próprio Código - é que a sanção administrativa não prejudicará a incidência da norma penal.

O art. 161 do CTB explicita, assim, o que, a rigor - tratando-se de um Código - dispensaria explicitação: a pretensão holística, de disciplina totalizante de todo o seu domínio normativo, no caso, conforme o art. 1º, "o trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional".

Essas considerações a partir do art. 161 CTB evidenciam o equívoco de um dos extratos doutrinários do acórdão recorrido que, ao recordar as hipóteses de revogação de uma lei por outra, conforme o didático art. 2º, § 1º, LICC, omite precisamente aquela que, no caso, ocorre.

Com efeito, se é certo que não houve revogação expressa da primeira parte do art. 32 LCP e, também, que em tese, o dispositivo - prevendo infração penal de perigo presumido - não seria incompatível com o tipo de perigo concreto do art. 309 CTB, a derrogação do primeiro, no tocante ao trânsito em vias terrestres, decorre, sim, de haver o Código - como é próprio das codificações e, na espécie, ficou expressamente declarado (art. 161) - tratado inteiramente de todas infrações penais comissíveis na condução de veículos automotores em vias terrestres.

A questão divide as duas turmas de competência criminal do Superior Tribunal de Justiça: a 5ª Turma, como no acórdão recorrido, dá pela subsistência do art. 32 LCP; em sentido contrário, decide a 6ª Turma.

Examinei os argumentos de ambas as orientações dissonantes.

Convenci-me, na trilha das considerações anteriores, da correção dos fundamentos, na 6ª Turma, do voto do il. Ministro Hamilton Carvalhido, no RHC 8807, do qual extraio:

 

"... a Lei nº 5.108, de 21 de setembro de 1966, que instituiu o Código Nacional de Trânsito, para além de definir e sancionar como infração administrativa a direção de veículo sem habilitação ou autorização (artigo 89, inciso I), preceituava, no capítulo das infrações (XI), que

 

"A aplicação das penalidades previstas neste Código não exonera o infrator das cominações cíveis e penais cabíveis." (artigo 95, parágrafo 2º).

 

E o Regulamento do Código Nacional de Trânsito, aprovado pelo Decreto 62.127, de 16 de janeiro de 1968, também proibindo a direção de veículo sem habilitação ou autorização (artigo 181, inciso I), reproduziu a regra da cumulação material das sanções administrativa, civil e penal, assim dispondo:

 

"A aplicação das penalidades previstas neste Regulamento não exonera o infrator das cominações cível e penal cabíveis." (artigo 187, parágrafo 2º).

 

Tais sanções penais, a que se referiam o Código Nacional de Trânsito e o Regulamento do Código Nacional de Trânsito, não eram outras que não as correspondentes aos crimes e contravenções caracterizados, incluindo-se, no elenco legal destas últimas, a falta de habilitação para dirigir veículo na via pública, tipificada na primeira parte do artigo 32 da Lei das Contravenções Penais.

A Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, induvidosamente avançada, regulou inteiramente o direito penal do trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação (Capítulo XIX), no qual vem tipificado como crime "dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano." (artigo 309).

É certo, de resto, que a direção sem habilitação simples subsistiu, no Código de Trânsito Brasileiro, apenas como infração administrativa, tipificada no artigo 162, inciso I.

A toda evidência, a lei nova, regulando inteiramente o direito penal do trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, revogou parcialmente o artigo 32 da Lei das Contravenções Penais, como resulta da última parte do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei da Introdução ao Código Civil.

Não fosse o bastante, a Lei nº 9.503/97, ao disciplinar a cumulação material de sanções, estatuiu, na letra do seu artigo 161,

 

"Constitui infração de trânsito a inobservância de qualquer preceito deste Código, da legislação complementar ou das resoluções do CONTRAN, sendo o infrator sujeito às penalidades e medidas administrativas indicadas em cada artigo, além das punições previstas no Capítulo XIX." (nossos os grifos). 

Tal cláusula, a da última parte do caput do artigo 161 do Código de Trânsito Brasileiro, é também regra hermenêutica autêntica, por isso, que, assegurando a incidência cumulativa de normas sancionatórias, exclui, por outro lado - diversamente do que dispunha a lei anterior - toda punição penal estranha ao Capítulo XIX da Lei nº 9.503/97, qual seja, o Dos Crimes de Trânsito, com o que certifica, tão evidente quanto peremptoriamente, a revogação parcial do artigo 32 da Lei das Contravenções Penais." 

 

De resto, a solução que restringe à órbita da infração administrativa a direção de veículo automotor sem habilitação, quando inexistente o perigo concreto de dano - a meu ver já evidente pelas razões puramente dogmáticas anteriormente expostas -, é a que melhor corresponde ao histórico do processo legislativo do novo Código de Trânsito, assim como às inspirações da melhor doutrina penal contemporânea, decididamente avessa às infrações penais de perigo presumido ou abstrato.

Testemunha Ruy de Barros Monteiro - de notória contribuição intelectual à elaboração do Código, como assessor do relator da matéria no Senado Federal -, com relação ao art. 309, que "a integração do tipo, dependentemente de produção de perigo  concreto, resultou de proposta de Substitutivo do Senado Federal, ao contrário do que preconizara a Comissão Especial da Câmara dos Deputados".

E explica que a solução atendeu, de um lado, à opção de elevar a crimes "todos os delitos pertinentes (ao trânsito), inexistindo, assim, a dicotomia crime-contravenção" e, de outra banda, à repulsa doutrinária à criminalização de fatos geradores de perigo abstrato.

Lembra a propósito as contribuições, no particular, de Luiz Flávio Gomes, Luiz Otávio de Oliveira Rocha e Luiz Vicente Cernicchiaro.

Dos três "Juízes", o primeiro, Luiz Flávio Gomes, dedicou à derrogação do art. 32 LCP pelo art. 309 CTB páginas de grande acuidade e particular eloqüência, que não teria dúvidas em subscrever.

Delas, vale recordar aquelas em que - aplicando precisos ensinamentos do teórico português Taipa de Carvalho (Sucessão de Leis Penais, Coimbra, 1997) - Luis Flávio Gomes demonstra, no plano puramente dogmático, que o art. 309 não representou, em relação ao art. 32 LCP, o simples aditamento de um tipo mais grave que o anterior, mas, na verdade, a descriminalização desse último:

 

[...]

 

Na mesma linha, Fernando Nogueira que declina, com exatidão, as evidências de que "a vontade do legislador, no novo Código de Trânsito, foi regular a matéria administrativa e penal por inteiro:

 

[...]

 

De lembrar ainda a competente análise de João Caldeira Bastos.

O parecer da Procuradoria Geral, de sua vez, empresta o endosso do seu prolator, o lúcido Subprocurador-Geral Edson de Almeida, à conclusão do severo Damásio de Jesus que vale transcrever:

 

[...]

 

Last but not least, Sr. Presidente, não posso deixar de explicitar minha convicção de que - ante o quadro de notória impotência do Judiciário para atender à demanda multiplicada de jurisdição e, de outro, à também notória impotência do Direito Penal para atender aos que pretendem transformá-lo em mirífica, mas ilusória, solução de todos os males de vida em sociedade -, tendo, cada vez mais, aplaudir a reserva à sanção e ao processo penal do papel de ultima ratio, e, sempre que possível, a sua substituição por medidas civis ou administrativas, menos estigmatizantes e de aplicabilidade mais efetiva.

 

Mais que tradução de uma simples tendência de política criminal, o princípio da intervenção mínima se me afigura derivado do substantive process of law, consagrado no art. 5º, LIV, da Constituição e que traz consigo, segundo já tem assinalado o Tribunal, o princípio da proporcionalidade: certo que a pena - como corretamente observou Roxin - é "a intervenção mais radical na liberdade do indivíduo que o ordenamento jurídico permite ao Estado", segue-se - como é do subprincípio da necessidade, que o apelo à criminalização só se legitima na medida em que seja a sanção penal "a medida restritiva indispensável à conservação do próprio ou de outro direito fundamental a que não possa ser substituído por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa"

Cumpre em nome da intervenção mínima - contra a doença, sempre tendente às recidivas, que Carrara chamou de "nomomania ou nomorréia" penal - a esquecida primeira parte do art. 8º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:

 

"La Loi ne doit pas établir que des peines strictement e évidemment nécessaires..."

 

Foi a boa regra que se observou no tema. Não se deixou impune o desrespeito ao preceito de lei segundo o qual a direção de veículos automotores em via pública reclama a posse de regular habilitação ou permissão: o novo Código o qualificou de infração de trânsito gravíssima (CTB, art. 162, I), à qual se cominou, além da apreensão do veículo, o triplo da multa correspondente a 180 UFIR (art. 258, I).

Ora, também no art. 32 LCP não se cominava à contravenção cogitada outra pena que não a multa.

De tudo resulta que a derrogação parcial, que ora sustento, sequer minimizou substancialmente a sanção cominada. Apenas desqualificou o fato, de infração penal que era, a ilícito administrativo, com duas conseqüências que são ambas de aplaudir: de um lado, obvia o efeito estigmatizante da condenação criminal, de acordo com a melhor orientação contemporânea, em se cuidando das infrações de perigo presumido; de outro, desonera a Justiça Criminal, congestionada, da repressão de uma dentre as inúmeras insignificâncias, que a tem inviabilizado.

De tudo, peço vênia ao em. Relator para dar provimento ao recurso e deferir o habeas-corpus: é o meu voto.

 

Retificação de Voto

 

Min. Ilmar Galvão: Senhor Presidente,  ainda na Turma, após ouvir o voto do em. Ministro Sepúlveda Pertence, já me convencera do acerto da tese por ele defendida.

Propus, entretanto, que o feito fosse trazido à apreciação do Plenário, por parecer-me que se estava diante de questão merecedora de um pronunciamento, em termos definitivos, do STF, principalmente diante da controvérsia que havia despertado, na doutrina e na jurisprudência, notadamente no seio do Superior Tribunal de Justiça, onde lavrava dissenso entre suas duas Turmas Criminais.

Daí, haver mantido o meu voto inicial, encampando a tese da não-revogação do art. 32 da LCP pelo novo Código de Trânsito Brasileiro, em favor da qual acabou de uniformizar-se a jurisprudência do STJ, a fim de que o Plenário pudesse examiná-la em confronto com a tese contrária, defendida pela maioria dos doutrinadores e sustentada no voto do em. Ministro Sepúlveda Pertence.

Plenamente convencido por S. Exª, adiro à maioria que em torno de seu voto se formou, retificando, para tanto, o entendimento inicialmente exposto.

Dê sua opinião sobre o assunto enfocado nesta decisão: 

Será oportunamente publicada

 



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