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Decisões: Furto. Coisa abandonada. Res nullius. Atipicidade da conduta.

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Juiz Erony da Silva

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 328.096-0 - 23/10/2001
PIRANGA EMENTA FURTO. COISA ABANDONADA. RES NULLIUS. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
O tipo penal de furto protege o bem jurídico patrimônio e, não havendo afetação de tal bem jurídico, é impossível cogitar-se em tipicidade da conduta. Assim, é atípica a conduta de quem subtrai bens que foram enterrados com sal para que se deteriorassem mais rapidamente, uma vez que está evidenciado não haver mais qualquer interesse na tutela patrimonial daqueles bens. Irrelevante a existência de obstáculo físico para se alcançar o bem abandonado, pois a intenção de quem se desfez da coisa de mantê-la inacessível a outrem não tem o dom de tornar inapropriável a res, pois, se assim fosse, haveria uma clara ofensa ao princípio da função social da propriedade, consagrado constitucionalmente. Se ilícita a posse da coisa, responderá o réu tão-somente nas sanções previstas pela sua posse, nunca por furto. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal Nº 328.096-0 da Comarca de PIRANGA, sendo Apelante (s): 1º) E.A.R. e 2ºs) H.G.M., H.R.M. e M.R.M. e Apelado (a) (os) (as): A JUSTIÇA PÚBLICA, ACORDA, em Turma, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, DAR PROVIMENTO AOS RECURSOS. Presidiu o julgamento o Juiz ERONY DA SILVA (Relator) e dele participaram os Juízes ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO (Revisor) e MARIA CELESTE PORTO (Vogal). O voto proferido pelo Juiz Relator foi acompanhado na íntegra pelos demais componentes da Turma Julgadora. Belo Horizonte, 23 de outubro de 2001. JUIZ ERONY DA SILVA
Relator V O T O O SR. JUIZ ERONY DA SILVA: O Ministério Público do Estado de Minas Gerais denunciou, na Comarca de Piranga, H.G.M., E.A.R., H.R.M. e M.R.M. como incursos nas sanções do art. 155 § 4º, I e IV do CP, por terem, na noite de 10 de março de 1999, por volta das 23h00, subtraído para si as ferramentas, armas e demais objetos descritos no auto de apreensão à f. 23, que haviam sido enterrados em um buraco de, aproximadamente, 2 (dois) metros de diâmetro, por 2 (dois) metros de profundidade, localizado no terreno do Ginásio Poliesportivo Hélio de Araújo Dias. Consta ainda da exordial acusatória que tais bens pertenciam ao Estado de Minas Gerais, e por tratar-se de instrumentos de crimes foram enterrados por determinação das autoridades locais para não se correr o risco de caírem em mãos criminosas, diante da pouca segurança do fórum da comarca. A sentença monocrática às f. 238 e seg. julgou procedente os pedidos articulados na denúncia e condenou os réus a 2 (dois) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa com valor fixado no mínimo legal. Aos quatro foi concedido o benefício do sursis. Inconformado, apelou Edson à f. 250, pugnando pela absolvição ao argumento de que o fato é atípico, uma vez que a res estava abandonada. Hélio, Hércules e Maurício apelaram à f. 255 apresentando suas razões nos termos do art. 600, § 4º, do CPP à f. 268 também argumentando pela atipicidade da conduta. As contra-razões ministeriais ao primeiro apelo podem ser encontradas às f. 258 e seg. e ao segundo recurso às f. 272 e seg., sendo ambas pelo improvimento do recurso. A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer às f. 278 e seg., opinou pela improcedência dos apelos. Em suma, é o relatório. Estando presentes os pressupostos de admissibilidade dos recursos, deles conheço. O douto Promotor de Justiça da comarca assim descreve o fato: "Trata-se de fato delituoso com grande repercussão na comarca de Piranga, eis que os agentes nele envolvidos, desafiando a autoridade do Poder Judiciário local, subtraíram armas, moto-serras (sic), foices, e vários outros objetos, coisas estas utilizadas por terceiras pessoas para a prática de vários crimes anteriores (todos com sentenças transitada em julgado), que foram mandadas soterrar pela autoridade judiciária, exatamente para não se correr o risco das mesmas caírem em mãos criminosas, diante da pouca segurança do fórum local" (o destaque consta no original). Tal descrição me faz lembrar das lições de Miguel Reale aos alunos de Introdução à Ciência do Direito: "Na Idade Média era freqüente o caso de se processar um animal, ou de se apurar a responsabilidade das coisas, o que pareceria absurdo ou aberrante a qualquer homem do povo, em nossos dias. Os processos de feiticeiras muitas vezes envolviam as vassouras, às quais se atribuíam qualidades ou aptidões que somente poderiam ser purificadas através de um julgamento especial" (In Lições Preliminares de Direito 11ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 226-227.). Impossível deixar de contrastar com a situação dos autos. Certamente, estivéssemos na Idade Média a denúncia seria nas iras do art. 351 do CP, com pena prevista de seis meses a dois anos de detenção, mas como estamos no 3º milênio, respondem os réus pelo crime do art. 155, § 4º, I e IV, como pena de dois a oito anos de reclusão. Difícil é acreditar... ZAFFARONI e PIERANGELI explicam o porquê das penas medievais a coisas e animais: "As sanções a coisas e animais têm por objeto fortalecer a ética social até o limite de convencer a população de que ninguém, nem sequer as coisas e os animais, nem tampouco os mortos, escapa à sanção penal, todos respondendo à mesma lei penal que a tudo governa" (In Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. p. 187.). Nem se diga que tais objetos não foram vítimas de qualquer tipo de pena. Qual outro motivo justificaria o enterro de uma motosserra avaliada em R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais)? Se se presumir que uma motosserra causa risco à população tão-somente por ter sido instrumento de um crime e, por tal razão deva ser enterrada, certamente não sobrarão facas de cozinha e automóveis nesta comarca. Impressionou-me o ritual descrito pela testemunha C.A.A.: "foram cavados aproximadamente um metro e meio a dois metros; a largura do buraco foi de aproximadamente quatro metros quadrados; para enterrar os objetos, foi utilizado areia, cimento e sal." Incrível, havia até um relógio Orient dourado sem pulseira avaliado em R$ 5,00 (cinco reais) lá enterrado... É até justificável o sepultamento da espingarda e das munições, mas de machados, foices, cutelos, canivetes, chuchos e, em especial, motosserras, realmente é lamentável. Esses últimos, pela mais simples presunção de boa-fé, são meras ferramentas que, ainda que bastante velhas ou mesmo estragadas, poderiam ser reaproveitadas por pessoas que não tivessem condições de adquirir utensílios novos. Rogata maxima venia, enterrá-las para não permitir seu uso sobre o singelo argumento de que já foram utilizadas na prática de crimes e, por isso, são perigosas é retornar ao Direito Penal Medieval. As mais de trezentas laudas deste processo certamente poderiam ter sido evitadas se as autoridades locais tivessem se dado ao trabalho de perguntar aos "coveiros" se algum deles se interessaria em ficar com qualquer das ferramentas, em especial com a motosserra. Edson Assis Rosa afirmou à f. 79 que: "o que mais interessou aos companheiros do depoente foi a motosserra". Hélio declarou à f. 82 que: "o depoente ajudou a cavar e procurar a motosserra; somente achou a motosserra velha". É bom frisar que todos os acusados são primários e é muito mais plausível que se interessassem pelas ferramentas do que pelas armas e munições. Ora, se não interessava mais ao Estado a posse de tais produtos, certamente aos acusados havia profundo interesse, tanto é que foram ao local à noite e "exumaram" as velhas ferramentas e a cobiçada motosserra. Se alguma reprovação há que se cogitar aqui, certamente é quanto às lamentáveis condições econômicas em que vive grande parte da população brasileira que obriga muitas pessoas a procurarem nos bens abandonados - conhecidos por lixo, por quem os abandona - algum utensílio capaz de ser recuperado e aproveitado. Evidentemente não pode a lei proibir que alguém se apodere do lixo alheio, ainda que, por qualquer motivo, quem o abandonou não deseje que outrem dele se apodere. O Código Civil Brasileiro estabelece em seu art. 592: "Quem se assenhorear de coisa abandonada, ou ainda não apropriada, pra logo que lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei. Parágrafo único. Volvem a não ter dono as coisas móveis, quando o seu as abandona, com intenção de renunciá-las."A defesa está repleta de razão. Não vejo como querer tipificar tal conduta como crime de furto. Nunca é demais lembrar que a existência de todo e qualquer crime fundamenta-se na proteção de um bem jurídico que a sociedade elege como de fundamental importância. O furto baseia-se na proteção do bem jurídico patrimônio e é óbvio que, se alguém tem interesse na proteção deste patrimônio, não o enterrra e manda salgá-lo. A questão é patente. Se não houve qualquer prejuízo patrimonial, impossível cogitar-se na existência de furto, pois não houve a necessária afetação do bem jurídico patrimônio para a ocorrência da tipicidade da conduta. O fato não é típico, pois falta-lhe o elemento normativo. Os bens não eram coisa alheia, mas sim, res nullius. Completamente irrelevante estarem soterrados em local cercado de arames e porteiras ou a utilização de concreto para a criação de obstáculo a subtrações. A objetividade dos fatos é que o Estado não tinha qualquer interesse naquele patrimônio, tanto é que mandou salgá-lo para que se aniquilasse mais rapidamente. Veja-se o trato pretoriano: "Para efeitos penais, constitui res derelicta o objeto abandonado pelo dono e por ele expressamente afirmado sem valor, ainda que possa ser valioso para terceiros e ainda que deixados, por comodidade, no próprio imóvel" (TACRIMSP - JUTACRIM 82/253). Por fim, vale lembrar sempre o texto da nossa Carta Magna que em seu art. 5º, XXIII, afirma que: "a propriedade atenderá a sua função social" Não havendo mais qualquer interesse patrimonial de alguém em relação a determinada coisa e estando isso claro e sem sombra de dúvidas é perfeitamente legítimo que outrem se apodere daquele bem. Desnecessário se faz perquirir a intenção de quem abandona a coisa. Ainda que desejasse impedir que outra pessoa se apossasse do bem abandonado, tal vontade não tornaria intangível a coisa, pois seria incompatível com a função social da propriedade que um bem, potencialmente útil, pudesse permanecer abandonado e ao mesmo tempo impedido de uma nova apropriação. Evidentemente que tais argumentos não são válidos quando o objeto é ilícito, como seria em tese, o caso de entorpecentes, ou mesmo de armas. Assim, poderiam em tese os agentes serem condenados por porte ilegal de armas, mas nunca por furto. Por todo exposto, absolvo os quatro apelantes das imputações que lhes foram feitas, determinando ainda a devolução dos bens a seus legítimos achadores, excetuando-se as armas e munições, salvo se comprovarem a devida habilitação legal. Custas pelo Estado. É como voto. JUIZ ERONY DA SILVA


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