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Decisão: Apelação. Fraude no sistema de Fundo de Garantia. Reconhecimento da tentativa. Substituição da pena corporal por prestação de serviços à comunidade.

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Juiz Élcio Pinheiro de Castro

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 2000.04.01.005781-0/PR RELATOR: JUIZ ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO EMENTA PENAL. ESTELIONATO. FGTS. ART. 171, § 3º, CP. IDONEIDADE DO MEIO FRAUDULENTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. JUÍZO CONDENATÓRIO. TENTATIVA. PRESCRIÇÃO PELA PENA CONCRETIZADA.
1. Configuração do tipo previsto no artigo 171, § 3º, do Código Penal, tendo o agente utilizado documentos hábeis a fraudar o sistema de saques do FGTS, administrado pela Caixa Econômica Federal, sendo descoberto em virtude da diligente atuação dos funcionários da empresa pública. 2. Não se cogita de insignificância da conduta, não só em razão do alto valor pretendido, equivalente a quase dez salários mínimos, mas também pelo fato do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço ser patrimônio de todos os trabalhadores, destinando suas verbas a relevantes programas sociais. 3. Sentença absolutória reformada para condenar o réu. 4. Impõe-se a diminuição da reprimenda em um terço face à tentativa (art. 14, II e § único, CP), eis que o delito não se consumou. 5. Prescrição pela pena aplicada, tendo em vista o decurso de mais de dois anos entre o recebimento da denúncia e a condenação. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos entre as partes acima indicadas, decide a Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, dar provimento ao recurso do Ministério Público e, de ofício, declarar extinta a punibilidade do réu, nos termos do relatório, voto e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto alegre, 01 de outubro de 2001. JUIZ ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO: - O Ministério Público ofereceu denúncia contra JAIR PERES MENDES, dando-o como incurso nas sanções do artigo 171, § 3º, c/c art. 14 do Código Penal, pela prática dos fatos assim narrados na exordial: "Na data de 10 de abril de 1997, por volta das 13h30 (treze horas e trinta minutos), na Agência Zacarias, da Caixa Econômica Federal, situada na Praça Zacarias, nesta Capital, o denunciado, com o intuito de obter vantagem ilícita para si, em prejuízo alheio, fez uso de documento falso para induzir em erro os funcionários daquela instituição, na tentativa de sacar indevidamente a importância de R$ 1.092,17 (mil e noventa e dois reais e dezessete centavos), que se encontrava depositada na sua conta vinculada do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS. O acusado, de forma deliberada, apresentou ao funcionário da Caixa Econômica Federal, termo de rescisão de contrato de trabalho -TRCT - da empresa Transvale Transporte de Cargas e Encomendas Ltda. (fl. 08), contendo a falsa declaração de que havia sido dispensado sem justa causa, quando, na verdade, havia pedido demissão da empresa (documento de fls. 07/08). O acusado chegou até a assinar junto ao Caixa um comprovante de pagamento do FGTS, no valor de R$ 1.092,17. Todavia, o funcionário da CEF, por desconfiar da autenticidade do documento, resolveu confirmar o pagamento dos valores junto à Gerência, momento em que tomou ciência de que em data anterior, 03 de setembro de 1997, Jair Mendes já havia comparecido no local tentando sacar os mesmos valores depositados na citada conta vinculada do FGTS. Ocorre que a gerente da Agência, Wilma Denise Gasparin, naquela oportunidade, constatou que o denunciado havia pedido dispensa da empresa Transvale - conforme declaração de fl. 12 e cópia autenticada do verdadeiro termo de rescisão de contrato de trabalho de fl. 13 - motivo que o impediu de levantar o dinheiro. Diante disto, o acusado foi preso em flagrante por agentes de Polícia Federal, acionados pela gerência da CEF/Agência Zacarias(...) A informação de fl. 38 da Delegacia Regional do Trabalho em Curitiba dá conta de que a homologação constante no verso do termo de rescisão de contrato de trabalho utilizado pelo acusado é inautêntica, assim como o Laudo de Exame Documentoscópico de fls. 68/70 atesta que o documento é materialmente falso, sendo que os manuscritos ali apostos partiram do punho de Jair Peres Mendes." A peça incoativa foi recebida em 17.11.97 (fl. 05). Processado regularmente o feito, sobreveio sentença julgando improcedente a pretensão punitiva para absolver o acusado, com apoio no art. 386, inciso III do CPP, em face do princípio da insignificância, considerando o pequeno valor da lesão patrimonial buscada, além do que o meio fraudulento empregado pelo réu não foi capaz de iludir a vítima, caracterizando, assim, atipicidade da conduta. Inconformado, apelou o Ministério Público sustentando que a falsidade documental em tela não pode ser considerada grosseira, eis que apta a produzir o efeito pretendido (saque do FGTS), somente restando descoberta em virtude da diligente atuação dos funcionários da Caixa Econômica Federal. Aduz o Recorrente, ainda, não ser irrisório o montante superior a mil reais, pois equivale a quase dez vezes o salário-mínimo na data dos fatos, não havendo se falar em crime de bagatela. Afirma que prejuízo dessa monta é relevante para o Fundo de Garantia, considerando sua função institucional, bem como a repercussão social do evento delituoso. Sem contra-razões, subiram os autos. Nesta Corte, foi nomeado defensor dativo, que respondeu ao recurso (fls. 119/121). A douta Procuradoria da República, oficiando no feito, opinou pelo provimento da irresignação. É o relatório. À revisão. VOTO JUIZ ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO: - Prende-se o inconformismo ministerial aos dois fundamentos que embasaram o decreto absolutório, quais sejam, inidoneidade do meio fraudulento e aplicação do princípio da insignificância. Quanto ao primeiro tópico, tenho que o tema não merece maiores digressões. Segundo a inicial, "a informação de fl. 38 da Delegacia Regional do Trabalho em Curitiba dá conta de que a homologação constante no verso do termo de rescisão de contrato de trabalho utilizado pelo acusado é inautêntica, assim como o Laudo de Exame Documentoscópico de fls. 68/70 atesta que o documento é materialmente falso, sendo que os manuscritos ali apostos partiram do punho de Jair Peres Mendes". Tal assertiva restou plenamente comprovada nos autos. O termo de rescisão de contrato de trabalho foi inequivocamente falsificado pelo réu, consoante o mencionado laudo pericial, revelando-se hábil a ensejar a percepção indevida dos valores do FGTS, o que só não se consumou devido ao zelo dos funcionários da instituição financeira. O modus operandi do denunciado consistiu em inserir dados falsos no guerreado documento, permitindo concluir que sua demissão do emprego teria sido "sem justa causa", hipótese em que o saldo fundiário é liberado pela CEF. Em que pese a negativa de Jair no interrogatório, suas declarações não resistem ao confronto com a verdadeira rescisão de contrato da empresa Transvale Ltda. (fl. 13, IPL apenso) onde consta "pedido de dispensa". A prisão em flagrante, corroborada pelos depoimentos testemunhais e demais provas acostadas, tornam induvidosa a autoria do delito, bem assim o elemento subjetivo do tipo penal em debate, consistente na vontade de obter vantagem própria em prejuízo de terceiro. Cumpre registrar que a gerente da Caixa Econômica Federal, Wilma Gasparin afirmou ser perfeitamente possível a JAIR, com os papéis apresentados, receber os valores do Fundo de Garantia, bastando não haver maior cuidado do funcionário do Banco, eis que os documentos eram aparentemente idôneos (fls. 74/75). Ressaltou essa testemunha, ainda, não ser de praxe efetuar contato com as empresas para confirmação dos dados. O preposto da firma Transvale, Valdir Rauen, confirmou que a dispensa de Jair se dera por pedido de demissão, não sem justa causa (fl. 63). Nesse contexto, tem razão o douto agente ministerial ao asseverar que "a fraude e o ardil utilizados seriam suficientes para enganar os funcionários da CEF se eles não tivessem sido extremamente cautelosos e diligentes para liberar seu saque de FGTS (...) Note-se que o réu apresentou toda a documentação necessária à CEF, incluindo a alteração cadastral. Se não fosse a perspicácia e o zelo extraordinários dos funcionários da Caixa, certamente teria recebido o valor constante na conta do FGTS. Não havia, portanto, ineficácia absoluta do meio, estando descaracterizado o crime impossível" (fls. 130/31). Veja-se, a propósito, o entendimento desta Corte: "PENAL. ESTELIONATO. CRIME IMPOSSÍVEL. INEFICÁCIA RELATIVA DO MEIO EMPREGADO. FGTS. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL (...) 1. Materialidade e autoria comprovadas. 2. O meio empregado pelo agente foi relativamente inidôneo, não afastando as tentativas de estelionato praticadas. 3. O crime impossível, no caso, somente ocorreria se a vítima - CEF - percebesse desde logo que o meio era fraudulento, não se certificando da validade ou certeza dos documentos apresentados. 4. A Caixa Econômica Federal, como gestora do FGTS, não age como atividade similar à instituição bancária ou financeira, mas sim como instituição de direito público, devendo incidir o parágrafo terceiro do art. 171 do CP-40 (art. 171, § 3º). 5 e 6. Omissis." (ACR nº 95.04.57846-2/PR, 2ª Turma, Relatora Juíza Tania Terezinha Cardoso Escobar, publicado no DJ de 21.01.98, p. 343) No que pertine à suposta insignificância da conduta, verifica-se que o réu pretendia sacar o FGTS no valor de R$ 1.092,17 (mil e noventa e dois reais e dezessete centavos), em 10 de abril de 1997. O salário mínimo, na época, era de R$ 112,00 (cento e doze reais), ou seja, o montante corresponde a quase dez meses de trabalho para quem recebe seus vencimentos no referido patamar. Portanto, soa desmesurado dizer que a prática descrita na denúncia não chega a lesar efetivamente o bem jurídico tutelado, pois os recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço são patrimônio de todos os trabalhadores, destinando-se ao subsídio de projetos sociais. Assim, as quantias levantadas indevidamente, fora das hipóteses autorizadas por lei, constituem sérios prejuízos à instituição, e, via de conseqüência, aos seus beneficiários. Nesse sentido, cumpre transcrever trecho das razões recursais, verbis: "Há que se considerar o contexto que envolve os fatos para que se possa auferir a insignificância da lesão, que conduz à atipicidade da conduta, sendo insuficiente para tanto a mera quantificação do prejuízo efetivamente causado. Relembre-se: o denunciado confeccionou documentos falsos e apresentou-os a funcionários de empresa pública federal, com a finalidade de sacar indevidamente recursos vinculados a um fundo público dotado de relevante função social. Não parece ser o exemplo de um comportamento desprovido de significância, de maneira a se dispensar sua repreensão criminal. Não se pode classificar esse delito como crime de bagatela. O princípio da insignificância atua naqueles casos em que a repercussão social do delito praticado é nula; certamente, isso não ocorre no presente episódio..." Com efeito não se pode adotar como parâmetro de insignificância, na espécie sub judice, o valor monetário que seria irrisório ao Estado, como se tem admitido nos casos de descaminho e outros crimes tributários. Na hipótese dos autos devem ser ponderadas todas as circunstâncias que envolvem o delito, em especial o fato de que as verbas do FGTS têm destinação coletiva, sendo utilizadas para financiar moradias aos trabalhadores de baixa renda. Por outro lado, se pudessemos considerar o quantum de R$ 1.092,17 como de pouca monta, incidiria então a figura do estelionato privilegiado prevista no § 1º do art. 171, CP, permitindo somente a redução da pena ou sua substituição, não o decreto absolutório. Concludentemente, não há se falar em pequena lesividade na conduta perpetrada com o intuito de fraudar o sistema do Fundo de Garantia e obter vantagem ilícita em seu detrimento, merecendo JAIR a respectiva sanção criminal, por ter incorrido na prática de estelionato contra ente público. Passo a aplicar a reprimenda. Da análise das vetoriais previstas no art. 59 do CP verifica-se, preliminarmente, haver notícia nos autos de apenas um inquérito policial onde o réu figurou como indiciado (fl. 14), o que não pode ser computado como maus antecedentes; a culpabilidade é normal; conduta social e personalidade do agente foram abonadas pelas testemunhas; em relação ao motivo, presume-se que seja a intenção de auferir vantagem indevida, inerente ao próprio tipo penal; quanto às circunstâncias, nada há digno de registro, exceto que o acusado compareceu duas vezes na Agência da CEF visando obter seu intento; não se cogita de conseqüências do crime, porquanto exauriu-se na forma tentada; por fim, o comportamento da vítima não trouxe qualquer influência. Com essas considerações, fixo a pena-base em um ano, majorando-a de 1/3 (um terço) por força da qualificadora estabelecida no § 3º do art. 171 do Código Penal, totalizando 01 (ano) e 04 (quatro) meses de reclusão. Como existiu mera tentativa, impõe-se a redução do apenamento também em 1/3 (um terço), ou seja, cinco meses e dez dias, com apoio no art. 14, inciso II e parágrafo único do Estatuto Repressivo. Ausentes quaisquer outras agravantes ou atenuantes, fixo a sanção definitiva em 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de reclusão. O regime deverá ser aberto. Arcará, ainda, o réu com 10 dias-multa no valor de 1/6 do salário mínimo. Substituo a pena corporal por serviços à comunidade ou entidade pública, em instituição a ser definida pelo Juízo da Execução, nos termos do art. 44 do DL 2.848/40, com a redação dada pela Lei nº 9.714/98. Por fim, considerando que a prescrição é matéria de ordem pública, pode ser conhecida em qualquer fase do processo (art. 61, CPP). Destarte, como a denúncia foi recebida em 17.11.1997, restando a pena, em razão da tentativa, fixada em quantum inferior a um ano, operou-se a prescrição da pretensão punitiva do Estado, face ao decurso de mais de dois anos entre a data do recebimento da exordial e a presente condenação (art. 107, IV e art. 109, VI, ambos do Código Penal). Frente a esse quadro, dou provimento ao recurso do MPF para condenar J.P.M. a 10 (dez) meses e 20 (vinte dias) de reclusão, além de 10 dias-multa, nos termos da fundamentação, e, de ofício, declarar extinta a punibilidade, pela prescrição, consoante explicitado.


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