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O direito de não produzir prova contra si mesmo

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

Samuel Miranda Colares

Especialista em Direito Processual Civil

Um dos aforismos mais difundidos do Direito brasileiro é o de que ninguéméobrigadoaproduzirprovacontrasimesmo. Este adágio tem se repetido com incomum frequência nos últimos anos, especialmente após a edição da Lei n. 11.705/2008, conhecida como “lei seca”, que endureceu as penas contra condutores de veículos que dirigem alcoolizados. Têm sido comum notícias jornalísticas acerca de motoristas que, utilizando-se da alegada prerrogativa, recusam-se a fazer o teste de alcoolemia através do aparelho conhecido como bafômetro.

Curioso observar, no entanto, que o afirmado direito do réu não encontra respaldo expresso em nenhum dispositivo da Constituição Federal, rica em garantias ao indivíduo que responde a processo penal. Diz-se que a garantia decorreria do art. 5º, LXIII[1] do texto constitucional, que afirma que o preso será informado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado, sendo o silêncio interpretado como uma forma de não colaborar com a elucidação de crime cometido por ele.

Sobre temas análogos, há algumas decisões do Supremo Tribunal Federal. No  Habeas Corpus 77.135, o STF entendeu que o réu pode se recusar a fornecer padrão gráfico para exame grafotécnico cujo resultado possa ser-lhe desfavorável. No HC 83.096, decidiu-se que o acusado não é obrigado a fornecer padrões vocais necessários à prova pericial sobre o timbre de voz, quando assim entender conveniente.

Ousamos discordar das aludidas decisões da Suprema Corte.

A explicação tradicional do aforismo nunca nos pareceu convincente. De fato, não se pode negar o direito do réu ao silêncio, primeiro por decorrer diretamente de mandamento constitucional, segundo por ter o interrogatório a natureza de meio de defesa do réu. É o que ensina Fernando da Costa Tourinho Filho,[2] para quem a Constituição deu a garantia de forma ampla, ou seja, se o réu (e não somente o preso) optar pelo silêncio em seu interrogatório, não poderá complicar-se no processo penal. Noutras palavras, o silêncio do acusado não poderá fazer com que ele seja condenado.

Ocorre que o interrogatório é apenas um dentre os diversos atos do processo penal. O avanço da tecnologia permite que sejam utilizadas diversas informações e meios de prova para elucidar a ocorrência de crimes. Perícias podem ser feitas das mais variadas formas – perícias em veículos, em objetos, em computadores, em partes do corpo, tais como o exame para detectar a presença de pólvora nas mãos. Há, ainda, pericias grafotécnicas, para identificar se determinada pessoa escreveu um manuscrito. Podem surgir, também, provas documentais importantes para o processo cuja posse seja do próprio acusado – fotografias pornográficas de crianças em seu computador, por exemplo. Enfim, as provas podem ser coletadas das mais variadas formas, e a tendência é que com o tempo se diversifiquem ainda mais.

Diferentemente do que ocorre em relação ao interrogatório, que é meio de defesa, na produção das provas o réu não pode valer-se do art. 5º, LXIII para obstar a investigação criminal através da recusa em participar de atos instrutórios. Se assim o fizer, estará cometendo abuso do seu direito de defesa, eis que exercendo-o em prejuízo da outra parte do processo – que no processo penal é normalmente o Ministério Público.

Tal afirmação, ao contrário do que possa parecer, não viola a Constituição (pois, como visto, a Carta Magna só trata do silêncio como meio de defesa, não se estendendo à produção de provas). Tampouco há ofensa a documentos internacionais de direitos humanos. Ao contrário: extrai-se de alguns deles a chave para entender o porquê de o réu não ter direito ilimitado a obstruir a instrução processual penal.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, estabelece o seguinte, em relação à questão em comento:

Artigo 8º - Garantias judiciais

(...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

(…)

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e

Perceba-se que a prerrogativa estabelecida pelo Pacto é a de nãoserobrigadoadeporcontrasimesmo,nemaconfessar-seculpado. O sentido é o de proibir-se que o acusado seja coagido a se autoincriminar, como ocorria na Idade Média, quando os Tribunais de Inquisição torturavam os réus até conseguir suas confissões. Noticia Marcellus Polastri Lima[3] que a confissão, antigamente chamada de “rainha das provas”, era o objetivo maior do processo penal, e equivalia à coisa julgada. Não havia preocupação em investigar se a confissão era verdadeira e legítima.

O réu, portanto, estava em uma posição absolutamente desigual e desprivilegiada ante o Estado. O que a convenção quis exterminar foi essa disparidade entre as possibilidades de êxito do acusado e do acusador, dando a ambas as partes do processo penal a mesma chance de vitória processual.

Não há, no entanto, qualquer menção no Pacto de São José da Costa Rica a um suposto do direito do réu de dificultar a produção de provas por parte da acusação. Não é possível extrair do trecho citado qualquer permissão para impedir as investigações contra si sob o fundamento de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Destaque-se, ainda, que o Pacto fora firmado numa época em que várias nações americanas, inclusive o Brasil, estavam submetidas a Estados de exceção, normalmente comandados por militares, em que as garantias processuais não eram respeitadas. Não são poucos os relatos de presos políticos torturados durante o regime militar, que no Brasil durou de 1964 a 1985. A garantia mencionada no tratado internacional, pois, dirige-se aos fatos ocorridos na época de sua aprovação, fatos estes que se não foram totalmente extirpados, tiveram sua frequência sensivelmente diminuída após a década de 1980, quando as ditaduras militares latino-americanas começaram a ruir e deram lugar a Estados Democráticos.

Por sua vez, o tratado internacional mais famoso e aclamado do mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948, traz em seu artigo XXIX, nº 1 e 2, as seguintes disposições:

Artigo XXIX

1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.

2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.

Como se vê, a declaração prevê que o indivíduo, destinatário maior da declaração de direitos, também possui deveres para com a comunidade. Mais: no exercício de seus direitos, o cidadão está limitado pelos direitos alheios, ou seja, não pode exercer suas prerrogativas em desacordo com as garantias de terceiros, também igualmente protegidas.

Observa-se, portanto, que mesmo os direitos mais amplos garantidos aos cidadãos têm um limite claro, dado pelo próprio tratado internacional: o direito alheio, que não pode ser suplantado pelo do exercente da garantia. É, em outros termos, a vedação ao abuso de direito.

Esta condicionante do exercício de direitos encontra respaldo em várias passagens do nosso ordenamento jurídico, como adiante destacamos:

  • a Constituição Federal (art. 9º e seu § 2º) estatui o direito de greve aos trabalhadores urbanos e rurais, mas afirma que os abusos cometido no exercício deste direito serão penalizados na forma da lei;
  • o Código Civil, em seu art. 187, estabelece que o abuso de direito é ato ilícito e sujeita o infrator a indenizar os prejuízos  daí decorrentes;
  • o art. 273, II do Código de Processo Civil determina a antecipação dos efeitos da tutela quando o réu abusar do seu direito de defesa.

Entendemos que a aplicação do processo penal não serve ao réu, mas sim a toda a sociedade (inclusive ao réu), para esclarecer a existência ou inexistência de um determinado crime. Se de um lado a persecução penal é um mal, em si mesmo, para o réu, de outro, pode ser um mal necessário, caso o crime realmente exista e o acusado seja o seu autor. Será imperativa a aplicação da pena para “reprovar o mal produzido pela conduta praticada pelo agente, bem como prevenir futuras infrações penais”,[4]  e neste contexto o processo penal é o único instrumento aceitável para se chegar a este objetivo.

Por tudo isso, entendemos que o antigo adágio ninguéméobrigadoaproduzirprovacontrasimesmo deve ser lido com bastante cautela. Ao mesmo tempo em que consagra o direito de qualquer cidadão de não se autoincriminar, não serve para que este mesmo cidadão impeça o aparelho estatal de investigar a existência de crimes, sob pena de superestimar o direito de uma única pessoa, subestimando o direito de toda a sociedade de apurar e punir delitos.

Em suma, discordando de algumas decisões emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, entendemos que a exegese do direito fundamental à não autoincriminação não pode servir de amparo ao réu que queira obstruir a persecução penal. O direito do réu resume-se à prerrogativa de não facilitar a sua própria condenação, através de confissões e produção de provas que lhe sejam prejudiciais; mas não alcança o suposto direito de atrapalhar as investigações dos órgãos estatais competentes para tanto, por meio de perícias e outros meios instrutórios.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal (parte geral). 11.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. Volume 3.

[1]     Art. 5º (…)
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

[2]    TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. Volume 3.

[3]    LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Processo Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 411.

[4]    GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal (parte geral). 11.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 489.

COLARES, Samuel Miranda. "O direito de não produzir prova contra si mesmo". Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br)


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