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A ortotanásia e o direito penal brasileiro

As opiniões expressas nos artigos publicados responsabilizam apenas seus autores e não representam, necessariamente, a opinião deste Instituto

João Paulo Orsini Martinelli

Mestre e Doutor em Direito Penal – USP, Coordenador-chefe do Departamento de Internet do IBCCrim

I. Introdução

Recente decisão judicial reabriu uma discussão que sempre provocou polêmica em todos os países, independentemente dos valores culturais predominantes: a possibilidade de interrupção de tratamento de pacientes em estado terminal – a ortotanásia. Com a edição da Resolução 1.805/2006, pelo Conselho Federal de Medicina, autorizando a ortotanásia, houve ação do Ministério Público Federal do Distrito Federal requerendo a suspensão da resolução, pois a conduta estaria em desacordo com o Código Penal. Houve concessão de medida liminar, suspendendo a Resolução, sob o argumento de que a ortotanásia não encontraria amparo na legislação. Por fim, em dezembro de 2010, nova decisão judicial derrubou a liminar suspensiva e a Resolução voltou a ser aplicada. Nesse período de suspensão, o CFM editou seu novo Código de Ética Médica com nova previsão de interrupção do tratamento e projeto de lei que regulamenta a ortotanásia ganhou velocidade no Congresso Nacional.

II. A ortotanásia e sua definição

No campo jurídico, a definição de ortotanásia tem imensa relevância na configuração do fato como criminoso ou não. Ao definir ortotanásia, deve ficar claro que o sujeito não possui dolo de atingir o bem jurídico vida e, ainda, evidenciar a existência de circunstâncias que excluam qualquer delito. De preferência, para não restarem dúvidas sobre a legitimidade da ortotanásia, mais eficiente é demonstrar a atipicidade da conduta.

Encontram-se na doutrina especializada diversos conceitos. Ortotanásia, ou eutanásia passiva, é a omissão de uma indicação terapêutica para determinado caso.[1] Também pode ser definida como a omissão de toda intervenção que possa prolongar a vida de forma artificial.[2] Complementam-se os conceitos afirmando que “é a atuação correta frente à morte. É a abordagem adequada diante de um paciente que está morrendo”.[3]

Em comum, pode-se extrair que a ortotanásia não pode configurar qualquer tipo penal. A finalidade do médico que interrompe tratamento ineficaz é reduzir o sofrimento do doente sem chances de cura. Diferente, pois, de alguém que age com fim exclusivo de eliminar a vida da vítima, desconsiderando qualquer benefício que a morte lhe possa trazer. Tanto é que, como ressalta BITENCOURT, em alguns diplomas estrangeiros a eliminação da vida recebe o nomen iuris de “assassinato”.[4] E este não é o caso da ortotanásia.

Não se pode olvidar da concepção de vida sempre conexa à de dignidade. A vida deve ser sempre digna, com todos os meios disponibilizados pela sociedade e pelo Estado. A sociedade, composta por todos os seus membros, deve respeitar os direitos individuais, utilizando-se a consagrada fórmula “o direito de um termina quando nasce o direito do outro”. A ninguém, salvo exceções, é dado o direito de interferir nas escolhas individuais, pois ninguém sabe o que é melhor a si mesmo do que o próprio indivíduo, conforme a clássica lição de STUART MILL. Apenas quem sofre por uma doença grave e incurável sabe o melhor desfecho para sua vida. Há quem queira insistir no tratamento, na esperança de uma cura pouco provável, mas há aqueles que desejam interromper o sofrimento intenso, e para isso, necessariamente, chega-se à morte. Não se pode privilegiar apenas a dimensão biológica da vida humana, ignorando-se a qualidade de vida do indivíduo.[5]

III. A Resolução CFM 1.805/2006 e o novo Código de Ética Médica

Diz o art. 1.º da Resolução 1.805/2006 que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. Após a suspensão da Resolução pela Justiça Federal, em 2009, houve a edição do novo Código de Ética Médica (Resolução CFM 1.931/2009), vigente desde abril de 2010, cujo texto, de forma mais velada, também tratou da ortotanásia. Segundo seu art. 41, parágrafo único, “nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal” (grifo nosso).

O novo Código de Ética Médica determina que, nos casos em que for interrompido o tratamento, deve o responsável médico utilizar os cuidados paliativos para evitar o sofrimento do doente terminal. Evidente está a ausência de dolo de atingir-se o bem jurídico vida, requisito fundamental do crime de homicídio. O elemento subjetivo de quem pratica a ortotanásia, dentro dos limites de permissão, resume-se a preservar a dignidade humana de quem está sofrendo inutilmente e deseja abreviar a própria vida.

Assim manifestou-se o Conselho Federal de Farmácia em informações preliminares no Processo 2007.34.00.014809-3, da 14.ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, no qual ocorreu a suspensão da Resolução 1.805/2006: “a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão-somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família”. Nada melhor que interpretar a lei com o auxílio de profissionais da saúde, que possuem conhecimentos mais apurados sobre o assunto do que o operador do direito.

Vale lembrar que a suspensão ocorreu em sede de decisão liminar, sem julgamento do mérito. No entanto, houve a seguinte manifestação do magistrado: “parece caracterizar crime (a eutanásia) porque o tipo penal previsto no sobredito art. 121, sempre abrangeu e parece abranger ainda tanto a eutanásia como a ortotanásia, a despeito da opinião de alguns juristas consagrados em sentido contrário”. Seguiu-se, assim, corrente jurisprudencial segundo a qual a ortotanásia enquadra-se no art. 121, § 1.º, do Código Penal, com redução de pena decorrente de relevante valor moral ou social.

Em dezembro de 2010, o próprio Ministério Público Federal mudou seu entendimento e a liminar suspensiva foi derrubada. Reconheceu-se que a permissão para a interrupção do tratamento a pedido do doente em estado terminal não fere a Constituição Federal. A ação foi julgada improcedente, acatando o juiz os pareceres de profissionais da saúde e as alegações finais do MPF, dando à Resolução a “interpretação mais adequada do Direito em face do atual estado de arte da medicina”. Ou seja, prevaleceu na decisão o direito ao exercício da autonomia do paciente em estado de morte iminente.

IV. Propostas de alterações legislativas

Poucos dias após a decisão da Justiça Federal que tornou válida a Resolução 1.805/2006, a Câmara dos Deputados, por meio de sua Comissão de Seguridade Social e Família, aprovou parecer favorável ao Projeto de Lei 6.715/2009, do Senado Federal, que altera o Código Penal, inserindo o art. 136-A. Resumidamente, o PL tem por objetivo retirar expressamente a ilicitude da ortotanásia quando preenchidos os requisitos legais.

Diz o art. 2.º do PL que “todo paciente que se encontra em fase terminal de enfermidade tem direito a cuidados paliativos proporcionais e adequados, sem prejuízo de outros tratamentos que se mostrem necessários e oportunos”. E, ainda, seu art. 3º define paciente em estado terminal de enfermidade como “pessoa portadora de enfermidade avançada, progressiva e incurável, com prognóstico de morte iminente e inevitável, em razão de falência grave e irreversível de um ou vários órgãos, e que não apresenta qualquer perspectiva de recuperação do quadro clínico”. Importante a definição de paciente em estado terminal para dar ao médico a possibilidade de saber se o caso concreto enquadra-se na permissão legal e evitar, posteriormente, responsabilidade penal por seu comportamento.

Quanto à exclusão de ilicitude do fato, o PL insere o art. 136-A no Código Penal, que possui a seguinte redação:

Art. 136-A. Não constitui crime, no âmbito dos cuidados paliativos aplicados a paciente terminal, deixar de fazer uso de meios desproporcionais e extraordinários, em situação de morte iminente e inevitável, desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

§ 1º A situação de morte iminente e inevitável deve ser previamente atestada por 2 (dois) médicos.

§ 2º A exclusão de ilicitude prevista neste artigo não se aplica em caso de omissão de uso dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais devidos a paciente terminal.

Em caso de aprovação do texto, deverão ser observados os seguintes requisitos para o fato não ser antijurídico: (a) o profissional de saúde não pode deixar de aplicar os cuidados paliativos; (b) os meios dispensados devem ser desproporcionais e extraordinários, ou seja, devem extrapolar a razoabilidade de um procedimento destinado a salvar a vida; (c) a situação de morte deve ser iminente e inevitável, quer dizer, não basta haver mera probabilidade; (d) deve haver consentimento do paciente (real) ou de familiar próximo (presumido). Além disso, é necessário atestado sobre a situação do paciente elaborado por dois médicos.

Algumas críticas são cabíveis ao PL na forma como se apresenta. A inclusão da excludente de antijuridicidade no art. 136-A parece equivocada. Tal artigo sucederá o art. 136, que tipifica a conduta de “maus-tratos”. Dá-se a impressão de que a exclusão de antijuridicidade recai apenas nas situações em que o médico expõe “a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de (...) tratamento (...), quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis” e os procedimentos de tratamento extrapolem o bem senso. Isto é, pela redação pode-se extrair que há maus-tratos na omissão do tratamento desproporcional e, mesmo que haja morte do paciente, o fato será justificado. Não se pode resumir a excludente a um crime de perigo qualificado pelo resultado.

Melhor seria se houvesse, também e principalmente, previsão expressa de exclusão da ilicitude no art. 121, que define o crime de homicídio. Deveria o legislador preocupar-se com a regulamentação da ortotanásia para impedir qualquer tipo de responsabilidade penal do médico pela suposta prática de crime contra a vida, mesmo que seja com pena reduzida. Por causa de uma cultura puramente legalista, que ainda exerce grande influência no direito penal e processual penal, deve haver clara disposição permitindo a ortotanásia em parágrafo a ser adicionado ao art. 121 para evitar, definitivamente, qualquer possibilidade de responsabilização penal quando preenchidos os requisitos legais.

Deveria, ainda, o legislador considerar a ortotanásia como excludente de tipicidade por ausência de dolo. Melhor que jogar para a segunda fase de verificação do delito (dentro do conceito tripartido), seria afirmar a ausência de elementos subjetivos capazes de preencher a tipicidade. Em vez de considerar a ortotanásia fato típico, porém, lícito, deveria o PL considerar o fato ATíPICO, eliminando qualquer responsabilidade penal desde o início. Como defendido desde o começo do trabalho, na prática da ortotanásia o que se pretende é eliminar o sofrimento do paciente terminal. Não há finalidade de atingir o bem jurídico vida de forma reprovável, como requer o art. 121 ao tipificar o homicídio. Ao contrário, o objetivo do médico é concretizar o direito do paciente ao exercício da autonomia, quando a morte for sua vontade real ou presumida.

Por fim, interpretando-se o caso concreto à luz da Constituição Federal, não haveria necessidade de previsão em lei ordinária da permissão à ortotanásia. Na lição de MÖLLER, “a dignidade da pessoa humana é considerada, juntamente com os valores da soberania, da cidadania, do pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa, o fundamento do Estado democrático brasileiro. (...) O valor da dignidade humana deve ser considerado o princípio fundamental do Estado e da Constituição, abrangendo todos os demais princípios e direitos fundamentais, uma vez que remete às exigências e necessidades humanas consideradas básicas e mais relevantes”.[6] A falta de previsão no Código Penal, portanto, não pode ser obstáculo para a isenção de responsabilidade do médico.

V. Conclusão

Apesar da complexidade do tema e das polêmicas levantadas, a ortotanásia precisa ser discutida no plano jurídico com o auxílio das ciências médicas e de seus profissionais. Devem ser consideradas a opinião do médico e, principalmente, a vontade do paciente em estado terminal ou sua família. Quando houver o desejo de interromper o tratamento, a autonomia individual deve ser respeitada, uma vez que, em regra, ninguém sabe o que é melhor a si mesmo do que a própria pessoa.

A norma penal deve ser interpretada de acordo com a lesão ao bem jurídico tutelado, sem ignorar a presença dos elementos subjetivos do tipo. No caso da ortotanásia, repita-se, não há dolo de lesão ou perigo à vida, ao contrário, pretende-se preservar a dignidade humana de quem está em estado precário de saúde, sem perspectivas de cura e tomado pelo sofrimento.

Em tese, não haveria necessidade de qualquer alteração na legislação, pois os direitos à liberdade e à dignidade humana estão previstos na Constituição Federal e devem ser aplicados na interpretação do Código Penal. No entanto, a previsão expressa em lei da ortotanásia como fato atípico (ou lícito) colocaria fim nas discussões a respeito de sua permissão.

BIBLIOGRAFIA:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 02. São Paulo: Saraiva. 2010.

FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires: Astrea. 2007.

FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Direito de morrer. Belo Horizonte: Del Rey. 2005.

GOLDIM, José Roberto. Eutanásia. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/eutanasi.htm>, acesso em 09/10/2010.

MÖLLER, Leticia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008.

[1] FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima. Direito de morrer. Belo Horizonte: Del Rey. 2005. p. 39.

[2] FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires: Astrea. 2007. p. 35.

[3] GOLDIM, José Roberto. Eutanásia. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/eutanasi.htm>, acesso em 09/10/2010.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 02. São Paulo: Saraiva. 2010. pp. 44-45.

[5] FREIRE DE SÁ, op. cit. p. 32.

[6] MÖLLER, Leticia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá. 2008. p. 143.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. "A ortotanásia e o direito penal brasileiro". Disponível em: (http://www.ibccrim.org.br)


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