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Boletim - 70 - Setembro / 1998





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

A inconstitucionalidade da figura do delegado especial

Grecianny Carvalho Cordeiro

Promotora de justiça em Jaguaretama (CE) e mestranda em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará

A Constituição Federal de 1998, no § 4º do art. 144 dispõe que as polícias civis serão "dirigidas por delegados de polícia de carreira", as quais estão incumbidas de exercer "as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares". Portanto, a investidura no cargo de delegado de polícia não prescinde da "aprovação prévia em concurso de provas ou de provas e títulos", nos termos do art. 37, II da Carta Magna.

Todavia, a despeito desse mandamento constitucional, tem-se verificado que a realidade prática mostra-se-nos completamente diferente, senão vejamos.

A carência de delegados de carreira concursados tem levado o Estado-administração a lançar mão de "meios alternativos" para suprir tal falta, criando, assim, através de ato do secretário de Segurança Pública, tal como no Estado do Ceará, a figura denominada de delegado especial, formada, via de regra, por policiais civis bacharéis em Direito, policiais militares ativos e inativos.

A esses delegados, ditos especiais, tem sido dada a incumbência de representar a polícia judiciária nas inúmeras delegacias de polícia espalhadas pelo interior do Estado, exercendo todas as atribuições constitucionais inerentes aos delegados civis de carreira.

A outra conclusão não podemos chegar senão à de que a criação de delegados especiais é flagrantemente inconstitucional, posto não serem os mesmos concursados, e no mais das vezes, sequer são policiais civis, ferindo, destarte, de forma frontal, os dispositivos constitucionais acima referidos.

O próprio Supremo Tribunal Federal, numa ação direta de inconstitucionalidade, Acórdão nº 070.787, Boletim 87, ano 15-1995, chegou a se pronunciar da seguinte forma: "Os ocupantes de cargos outros na Polícia Civil não podem ser 'transferidos' para o cargo de delegado de Polícia, sem que essa nova investidura seja necessariamente precedida de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. A jurisprudência do STF não tem transigido com a necessidade de observância, pelo Poder Público, do postulado constitucional do concurso público, eis que a investidura em cargo ou em emprego público — ressalvadas as nomeações para cargos em comissão — não prescinde da prévia aprovação do candidato naquele certame" (STF, em Ses. Plen., publ. em 18.08.95, ADIn nº 1.254-1-RJ. Min. Celso de Mello, Governador do Estado x Assembléia Legislativa).

Todavia, diante da realidade interiorana, notadamente naqueles municípios onde a criminalidade, via de regra, é elevada, onde o efetivo policial militar é irrisório, onde a delegacia/cadeia pública possui estruturas precárias, onde inexiste sequer viatura policial, como fica a figura do delegado especial que pratica os atos próprios de delegados civis de carreira, qual seja, instaurando e presidindo a feitura de inquéritos policiais, procedendo as diligências necessárias à apuração e elucidação das infrações penais, representando pela decretação da prisão preventiva e temporária, realizando o auto de prisão em flagrante, etc.?

No que pertine à confecção do inquérito policial por delegado especial, há que se dizer que o mesmo, enquanto inquérito policial é nulo, posto que elaborado por pessoa estranha àquela constitucionalmente competente (art. 144, § 4º); no entanto, isso não o torna totalmente imprestável, afinal, se ocorrido um crime, este foi elucidado em sua autoria e materialidade, embora através de delegado especial, pode ser o mesmo considerado como mera peça informativa, da qual pode se servir o Ministério Público para propor a ação penal cabível.

Desse modo, embora respeitando os posicionamentos em contrário, considero absurda a opinião defendida por alguns, de que qualquer peça confeccionada por delegado especial deveria ser completamente rejeitada ou desmerecida pelo Ministério Público, não devendo este aceitá-la sob hipótese alguma, quer como inquérito policial, quer como mera peça informativa.

Ora, como é fartamente sabido, o inquérito policial não é considerado como imprescindível para o oferecimento da denúncia por parte do promotor de justiça, tanto assim que este poderá dispensá-lo, conforme prevê o art. 39, § 5º, e art. 46, § 1º, do CPP.

Consideramos ainda imprudente, data venia, o entendimento de que, diante do cometimento de um crime, não havendo delegado civil de carreira na comarca, deveria ser a infração penal apurada somente pelo respectivo delegado civil regional, então competente para instaurar e presidir o competente inquérito.

Os promotores de justiça do interior do Estado — que vivenciam a realidade de seus comarcandos, marcada pela miséria e pela descrença na Justiça, principalmente no nosso sertão nordestino, onde o coronelismo e o voto de cabresto sempre imperaram, onde o Estado Democrático de Direito é um termo por muitos ainda desconhecido —, sabem que esperar meses e meses para que um delegado civil regional conclua um inquérito policial é algo no mínimo desumano, afinal, aquela comunidade interiorana, já tão pequena, espera ver seus crimes solucionados e seus responsáveis devidamente punidos o quanto antes.

Não se está dizendo aqui que o Ministério Público deva ser conivente com a figura inconstitucional do delegado especial, de modo algum, mas tão-somente que o promotor de justiça, diante da omissão do Estado-administração, não pode simplesmente cruzar os braços e aguardar por meses que o delegado regional respectivo confeccione um inquérito policial, ou por anos, para que o Estado realize concurso para delegado civil de carreira, para, então oferecer a denúncia.

Ademais, nada obsta a que as informações elucidativas — que são —, colhidas por um delegado especial, sejam recebidas pelo Ministério Público como peças informativas para o embasamento da peça delatória.

O que não se pode admitir é que o Ministério Público se omita, deixe de promover a persecutio criminis sob o pretexto amarelo de que inexiste delegado civil de carreira na sua respectiva comarca para elaborar um inquérito policial; afinal, o Ministério Público, como fiscal da lei e representante da sociedade, "incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis", deve utilizar-se dos meios legais alternativos disponíveis ao exercício de suas funções, procurando contornar as deficiências materiais do Estado-administração, sob pena de cair no mais absoluto descrédito.

Grecianny Carvalho Cordeiro
Promotora de justiça em Jaguaretama (CE) e mestranda em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará.



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