INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 299 - Outubro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Editorial

Mais uma vez, a redução da maioridade

A pauta da redução da maioridade penal está, novamente, em debate no Congresso Nacional. Senadores e Deputados dão seguimento à tramitação de propostas punitivistas de forma apressada e sem levar em consideração as inúmeras manifestações contrárias à aprovação da matéria por parte de profissionais da área, movimentos sociais e organismos de proteção de direitos humanos nacionais e internacionais.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 33/2012, de autoria do Senador Aloysio Nunes, cria uma nova figura no ordenamento brasileiro, o “incidente de desconsideração de inimputabilidade penal”. Tal incidente seria promovido de forma privativa pelo Ministério Público, em cada caso concreto, para possibilitar a imputação penal de adolescentes com menos de 18 e mais de 16 anos, em casos de reincidência do delito de roubo qualificado, além de homicídio doloso, estupro e outros crimes específicos.

Em resumo, o incidente teria o fim de atestar, a partir de um laudo feito de forma unilateral e inquisitiva, a capacidade de um/a adolescente compreender o caráter criminoso de sua conduta, levando em conta seu histórico familiar, social, cultural e econômico, bem como de seus antecedentes infracionais.

Esse incidente seria usado, em tese, para casos excepcionais. Porque, sim, delitos graves cometidos por adolescentes são exceção. Entretanto, não se pode deixar de pontuar que no Brasil, quando uma pessoa imputada é uma pobre, negra e de periferia, a exceção vira regra. As e os adolescentes brasileiros selecionados pelo sistema de justiça provêm de camadas populacionais sem acesso à ampla defesa e ao contraditório, e seguirão como clientes preferenciais dessas instituições perversas e desiguais.

As justificativas do parecer do Senador-relator Ricardo Ferraço abordam, de forma geral, o argumento de que o desenvolvimento mental de jovens dos dias atuais é muito superior ao de décadas atrás, principalmente em virtude da revolução tecnológica nos meios de informação. Utiliza, em sua fundamentação, a obra de Tobias Barreto, “Menores e Loucos em Direito Criminal”, datada em 1884. Tal obra, escrita sob a influência do paradigma etiológico da Escola Positiva da Criminologia, adota critérios biológicos para explicar as causas da criminalidade, o que há muito já foi superado pela Criminologia e pelo Direito Penal contemporâneo.

É importante ressaltar que os debates sobre a capacidade de discernimento são travados e avançam há mais de um século. E que, a partir da Doutrina da Proteção Integral, assumida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),(1) não se nega que adolescentes com mais de 16 anos tenham capacidade de compreender as consequências e os efeitos lesivos de atos infracionais. Inclusive, considerar as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos é afirmar sua capacidade de compreender o mundo, compreender-se e expressar-se nele.

Todavia, no último século, a infância e a adolescência foram distinguindo-se cada vez mais da idade adulta. Com o passar do tempo, foi-se fazendo mais tardio o acesso ao trabalho e à educação, o que se relaciona com a necessidade de maior formação educativa e consolidação de alguns direitos próprios à infância e à adolescência. Por isso, o que foi levado em consideração nesse campo é que esta parcela da população merece atendimento especializado em razão de sua condição de pessoa em desenvolvimento, perspectiva adotada pelo Brasil e pelos principais organismos internacionais que recomendam para crianças e adolescentes a existência de um sistema de justiça especializado para processar, julgar e responsabilizar jovens autores de delitos.

Tendo em vista a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro, precário, insalubre e dominado por facções criminosas, parece óbvio que reduzir a maioridade penal, em vez de constituir uma forma de enfrentamento à violência, não passaria de um elemento a mais para agravar o problema da insegurança no país. Como ensinou Foucault,(2) a prisão, desde o início de seu surgimento, é apontada por diversos estudiosos como instituição incapaz de oferecer o que promete, como “escolas do crime” e lugares que reforçam o vínculo com a criminalidade das pessoas segregadas.

Existe um sistema especializado para trabalhar com adolescentes em conflito com a lei: o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE). Ele pode ter seus problemas, mas está buscando se adaptar a novas metodologias de trabalho socioeducativo, como as resoluções alternativas de conflitos. Entretanto, em vez de apostar no aprofundamento desse trabalho, construído desde a consolidação do ECA, parlamentares visam aprovar uma legislação cruel e com claros objetivos eleitoreiros.

Jogam com a vida de centenas de adolescentes que terão suas trajetórias de vida marcadas pelo sistema penal de forma permanente e irreversível. O óbvio ainda precisa ser dito: a proposta é uma medida que visa criminalizar ainda mais a juventude pobre, colaborando para a manutenção de uma ordem social violenta e desigual.         

A luta a ser travada é contra o populismo punitivo que se refere, especialmente, a uma mudança de mentalidade, buscando superar a desinformação que leva à percepção de que jovens não recebem punição suficiente pelo sistema de justiça juvenil. É preciso refletir sobre o lugar-comum de que leis penais, inflição de dor e punição severa poderiam amenizar o problema da insegurança na sociedade brasileira.

Problemas complexos requerem bem mais que a aprovação de leis. E a juventude brasileira merece mais do que punição para se afastar dos delitos.

Reafirmamos a necessidade de implementar o ECA e o SINASE em sua integralidade, com esforços de fiscalização para fazer cumprir o que já se encontra em legislação especial, normativa suficiente e pendente apenas de políticas públicas adequadas para tratar toda a população, sem exceção, de forma humana e digna, como prevê a Constituição Federal.

Notas

(1) Lei 8.069/1990.

(2) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.



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