INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 235 - Junho /2012





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL - Sobre a tutela da intimidade

Já seria lugar-comum afirmar que o desenvolvimento tecnológico, característico das últimas décadas, modifica ou mesmo inaugura modalidades de ofensas a bens jurídicos, o que representa um desafio aos estudiosos do Direito Penal. Embora um olhar mais apurado possa detectar que a tecnologia catalisa a criminalidade no que ela tem de mais tradicional – fica difícil imaginar um assalto urbano feito atualmente sem o uso do celular, como também seriam impraticáveis os agendamentos de batalhas das torcidas de futebol, ausentes as redes sociais, é diante de casos de maior divulgação que explodem os questionamentos acerca da necessidade de regulação dos novos meios de comunicação, com as corriqueiras propostas de criminalização de uma ou outra nova conduta, surgida da casuística. Em especial, as recentes publicações na Internet de fotografias hackeadas que expunham, sem consentimento, o mais íntimo de uma conhecida atriz nacional (à parte de sua possível relação com um crime de extorsão), reacendem a discussão sobre os mecanismos de controle penal da Internet.

A abordagem menos apaixonada do tema exige abstrair alguns elementos que poderiam retirar do observador a objetividade: o chamamento da resposta penal mais firme, por conta da propaganda, muitas vezes involuntária, advinda da representatividade da figura pública vitimada já levou a consequências graves em termos de recrudescimento de leis, disso sabemos todos. Esse mesmo fator pode obscurecer elementos de análise que viriam sem esforço à mente do penalista, a exemplo da autocolocação do ofendido em risco, bem como a parcialidade dos pedidos de cadeia a quem tenha permitido vazar arquivos digitais com fotos da atriz, como se esse fora um dos delitos mais graves que assolam o país. Não o é.

Mas ainda assim, o caso realmente desvela a necessidade de um esforço para definir problemas de imputação que afloram, como novidade, no mundo virtual. Se ainda resta alguma dúvida de que o papel dos antigos editores de jornais vem sendo substituído pelo funcionamento dos instrumentos de busca da Internet, que automaticamente compõem as manchetes da web, não deve o penalista duvidar de que destes tempos em diante enfrentará ainda outras questões de imputação análogas, ou seja, havidas quando a inteligência artificial decide, talvez sem qualquer interferência humana, a quem irá ofender. Ao contrário, leis que poderiam dar pistas da responsabilidade de garante, como controlador de uma fonte de risco ao bem jurídico – como era o caso da Lei de Imprensa, com seu instituto de responsabilidade sucessiva – foram retiradas do nosso ordenamento, porque entendidas inconstitucionais pelo tribunal competente. Em outros termos, se pouco soubemos lidar com o conflito entre liberdade de expressão e honra, quando nos tempos de imprensa escrita e relativamente centralizada, mais improvável será que solucionemos rapidamente atritos de semelhante natureza, no capilarizado e democrático espaço virtual.

Essa dificuldade de lidar com os novos meios tecnológicos é, portanto, quase um lugar comum. O que parece bem menos discutido, daí a exigir mudança de foco, é saber quanto tempo tardará o legislador nacional para harmonizar o ordenamento penal aos valores de um Estado Democrático, que sabemos claramente inscritos na Constituição. Daí o ser atitude mais relevante, perante o desenvolvimento do poder ofensivo da tecnologia, questionar a falta de proteção do legislador nacional a um dos bens jurídicos mais caros em um estado que pretende tutelar direitos da personalidade: a intimidade.

Como fator essencial do desenvolvimento da pessoa, esse valor tem atualmente uma infraproteção legislativa. Não obstante várias leis internacionais, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (art. 12), ou a Declaração da ONU 3.348, que em meados da década de setenta, quando os computadores mal surgiam, conclamou os Estados-membros a tomarem medidas para proteger a população dos efeitos do mau uso da tecnologia, os avanços na redação de normas que protejam o cidadão diante da capacidade imensa de combinação de dados e de divulgação do mundo virtual segue, no País, a passos lentos. Nosso Código Penal não nomina a intimidade como valor protegido, daí tipos que em ordenamentos estrangeiros são dela fator de proteção, aqui ainda resistem como elementos de um Estado patrimonialista e quase totalitário: é assim que a violação de segredo profissional se dirige a uma autônoma “inviolabilidade de segredos”, sugerindo a maior gravidade da quebra de um dever que do risco ao livre desenvolvimento da personalidade; no mesmo artigo, a inserção de um supérfluo elemento normativo, da locução “sem justa causa”, indica que o legislador observa causas justificantes para a ação típica, muito mais amplas que as inscritas na Parte Geral do Código; a quebra de sigilo do funcionário público, mesmo depois de reformado no ano 2000, denota a proteção apenas da Administração, que deve manter inviolável sua esfera de segredo de Estado, novamente deixando de lado a referência ao direito individual. Entre outras circunstâncias, ilustradas em um Código que concede ao constrangimento ilegal a terça parte da pena que comina ao furto, em clara indicação dos valores maiores que pretende proteger: o patrimônio e a autoridade. Esses valores, globalmente analisados, não são os que predominam na Lei Maior.

Em outras palavras, talvez o problema do legislador penal não esteja nos novos riscos que o mundo tecnológico carrega consigo. O problema está em saber se (e quando) conseguiremos reequilibrar o sistema punitivo à valorização democrática dos bens jurídicos relacionados ao desenvolvimento livre da personalidade, entre os quais está a intimidade – direito de artistas reconhecidos e de cidadãos comuns.



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